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Brasília, cidade-Cerrado

Por Carlos M. Teixeira
Editoria Bruno Campos

O verde do entorno de Brasília é o Cerrado, savana tropical que se espalha pelas áreas mais centrais do país, e que também guarda algumas semelhanças tipológicas com os lotes vagos das grandes cidades e seus matagais. O Cerrado são as plantas forrageiras de Brasília e seus arredores, onde há também ervas daninhas, pestes vegetais, capins que invadem calçadas e todo o verde indesejado (nesse sentido estrito, Cerrado = capim urbano). E assim como os capins são odiados quando em meio urbano, o Cerrado pode ser considerado como o bioma brasileiro mais desprotegido em termos legais.

Lúcio Costa

Inspirado pelos parques da Inglaterra, país onde passou sua infância, Lúcio Costa, autor do Plano Piloto de Brasília, considerava os lawns, extensos gramados dos parques ingleses, como um dos principais ingredientes da concepção urbanística da capital. Brasília é, em essência: um eixo dos edifícios públicos principais, um eixo das superquadras residenciais, e um sistema rodoviário capaz de funcionar sem a necessidade de cruzamentos. Tudo isso rodeado de jardins e parques desenhados segundo a “técnica da paisagem”.

Mas essa para ele não era uma cidade-Cerrado e sim cidade da paisagem entre o artificial e o natural, ele insinuava: “Normalmente, urbanizar consiste em criar condições para que a cidade aconteça; ao passo que em Brasília tratava-se de tomar posse do lugar e de lhe impor – à maneira dos conquistadores ou de Luiz XV – uma estrutura urbana capaz de permitir, num curto lapso de tempo, a instalação de uma Capital. Ao contrário das cidades que se conformam e se ajustam à paisagem, no Cerrado deserto e de encontro a um céu imenso – como em pleno mar a cidade criou a paisagem.”

Mas, na verdade o que houve foi o contrário: a paisagem criou a cidade, e isso me permite dizer que Brasília é, acima de qualquer outra definição, uma cidade-Cerrado (ou, para criar uma definição mais sonora, uma cidade-mato). Esta é, sem dúvida, o maior elogio que uma cidade construída no Cerrado poderia ter – não importando aqui as muitas diferenças que existem, de um lado, entre as árvores exóticas de Brasília e, de outro, o Cerrado intocado das regiões mais distantes do Distrito Federal.

Cidade-Cerrado?

Provavelmente há uma mitologia brasiliense que ainda está por ser narrada. O céu azul e a terra vermelha ainda vão inspirar uma nova prosa, uma nova ecologia: a dos capins sem fim. Nenhum monumento, nenhuma exuberância. Mesmo assim, por que é que o Cerrado é fascinante? Deve ser a potência da pura extensão territorial. Os sussurros da imensidão ameaçada. O fim da distinção heróica entre natureza e cultura. O choque incalculado entre a arquitetura nacional e o Planalto Central. A sucessão de funções rígidas do urbanismo moderno (setor hoteleiro, setor comercial, setor bancário etc.) corrompidas pela sucessão livre de árvores de casca grossa (barbatimões, pau-santos, jacarandás-do-cerrado etc). As curvas orgânicas dos troncos retorcidos sobrepostas às curvas geométricas das abóbodas e dos arcos. A capital como prova irrefutável de que o Brasil não é um país moderno (e sim um país de natureza soberana e avassaladora, ainda). A negação da herança barroca e colonial e o elogio da vitalidade primária da terra. E por último, a imagem maior da nossa culpabilidade: porque Brasília não é, de fato, uma cidade-Cerrado?

Vingança

O domínio artificial das gramas batatais da Esplanada dos Ministérios está com seus dias contados. Pois, ao contrário do que queria Lúcio, não há gramados ingleses em Brasília: há sementes de capim-carrapato em hibernação, à espreita de uma oportunidade para vingarem a sua expulsão. O futuro é das espécies locais e não das exóticas mantidas sofregamente pelos garis do Distrito Federal.

Defensores de Brasília vão argumentar que na verdade há vegetação autóctone na cidade. Estão enganados pelas aparências. Por exemplo: os buritis que adornam os palácios da capital não nasceram ali, foram transplantados. Para a Praça dos Buritis foi um indivíduo com cerca de 20 metros de altura, 25 toneladas e 200 anos (idade calculada pelos anéis do fuste). Em 1967, 51 buritis foram levados para o Palácio do Itamarati. Em 1971, 47 foram para o Setor Militar Urbano. Em 1977, buritis que antes habitavam uma vereda em Goiás foram levados para o Parque Recreativo de Brasília. (Um dos motivos dos transplantes é que as plantas do Cerrado são de crescimento lento. Uma canela-de-ema atinge a idade adulta com mil anos de idade. O capim-barba-de-bode fica adulto com 600 anos, e um buriti atinge 30 metros de altura com 500 anos. Como disse o geógrafo Altair Barbosa, as veredas – que existiam em abundância até pouco tempo – eram compostas de plantas jovens quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil. Palmeiras que brotaram em 1500 são os mesmos buritis que hoje têm 25 ou 30 metros.)

Mas voltando à vingança dos capins: esta não é uma questão local. Considere, por exemplo, o efeito negativo da grama nos Estados Unidos, um país onde toda casa deve estar envolta por um relvado sempre bem cuidado. Esta tradição começou nos castelos das aristocracias francesa e britânica no final da idade média, quando o relvado era (e ainda é) símbolo de poder, prestígio e dinheiro. Tempos depois, com o modelo de subúrbio americano seguido pela invenção dos sistemas de irrigação automática e do corta-gramas, o relvado tornou-se acessível a milhões de famílias a ponto de ser hoje um elemento fundamental do paraíso suburbano cultivado pela pequena burguesia dos Estados Unidos. Recentemente, um estudo da NASA concluiu que há 63.000 milhas quadradas de grama no país, cobrindo uma área maior que a do estado da Geórgia. Manter a grama verdinha pode consumir cerca de 50 a 75% da água de uma residência. Corta-gramas das casas americanas poluem o ar e exigem 17 milhões de galões de gasolina todo ano. Gramados requerem fertilizantes e pesticidas: são US$ 36 bilhões gastos só com estes químicos, quantia 4,5 vezes maior do que o orçamento anual da Agência de Proteção Ambiental americana.

Um gramado de plantas nativas, por outro lado, fornece habitat para pássaros, insetos etc. Gramíneas locais extraem dióxido de carbono do ar e fixam-no no subsolo, têm raízes mais profundas e armazenam mais carbono. Em lugares secos como o sul da Califórnia não há razão para os gramados convencionais existirem: em meio à seca dos últimos anos, as prefeituras californianas estão oferecendo incentivos para os proprietários converterem seus gramados em vegetação nativa.

Nova Ecologia

Estaríamos diante de uma oportunidade para imaginarmos uma nova ecologia urbana? Uma nova forma de ver a cidade na qual cidade e território estariam confundidos numa mesma e indissociável paisagem? Aqui, o fundo predomina e embaça a figura; o ar, a luz, a vegetação e o calor desfazem a arquitetura. O de Brasília é um verde selvagem que não precisa ser protegido por grades, como num parque urbano convencional. Um meio-termo não rotulável: é a vegetação de gramas tão indesejada como aquela dos lotes vagos das grandes cidades, mas ao mesmo tempo uma extensão urbana de um domínio natural onde está a segunda maior reserva da fauna e da flora do país. Uma operação bem-sucedida de fusão figura-fundo que põe em prática o que outras cidades modernas têm como um fim último – fim aqui alcançável já que estamos em meio a um ativo inebriante: o Cerrado.

O verde que entusiasma em meio aos blocos que desencantam; o mar de espaço que combate a arrogância desta empreitada urbana: é preciso falar de Brasília com inocência, esperando com isso o despertar de uma artimanha ainda embrionária. Uma manobra que apela para a coexistência da ordem e da desordem, da permanência e do devir, do futuro e do passado, do fundo-figura e da figura-fundo.

No final, este descobrir do torpor do Cerrado deve ser feito sempre com uma ressalva: hoje ele não é mais virgem, não é uma folha sem traços de uma utilização prévia. Antes, essa operação deve estar, necessariamente, contaminada por um conflito entre sólidos e vazios, verdes e magentas. Como disse o crítico José Miguel Wisnik, “O sertão se destrói, inviolável — porque nele resiste, para o bem ou para o mal, o substrato irredutível e rebelde às superações — retornando sempre, já que nada é capaz de cortá-lo (e as árvores cortadas só o confirmam).”

O sertão é inviolável, mas nem todos o veem assim. Ao traçar os dois eixos que resumem seu Plano Piloto, Lúcio Costa enunciou a frase digna de um conquistador: “Gesto de quem toma posse: dois eixos cruzando em ângulo reto.” Mas não, Brasília não tomou posse do Planalto Central: este é que está, capciosamente, recuperando um território aparentemente perdido. Deve haver um solo ácido e vermelho sob o asfalto brasiliense (sous les pavés, la terre!); deve haver indícios de uma persistência do Cerrado em Brasília e de Brasília no Cerrado. Assim como a modernidade conservadora do Brasil é feita de duas camadas — o arcaico e o novo — sempre sobrepostas e nunca separadas.

Esse texto é um resumo do ensaio homônimo publicando originalmente no portal Vitruvius (vitruvius.com.br) e na plataforma Nonument (nonument.org).

Carlos M Teixeira é arquiteto, sócio do escritório Vazio S/A e autor dos livros História do Vazio em Belo Horizonte e Espaços Colaterais 

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