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Memória e patrimônio em Giselda Leirner, Ruth Tarasantchi e Leila Danziger

Bem te conheço, voz dispersa nas quebradas,
manténs vivas as coisas
nomeadas.
Que seria delas sem o apelo
à existência,
e quantas feneceram em sigilo
se a essência
é o nome, segredo egípcio que recolho
para gerir o mundo no meu verso?
para viver eu mesmo de palavra?
para nos ressuscitar a todos, mortos
esvaídos no espaço, nos compêndios?

(Carlos Drummond de Andrade)

Editoria Lyslei Nascimento

história da Shoah tem, quando se trata das crianças, um dos seus capítulos mais assustadores. A infância roubada – desde o encarceramento em guetos e campos de trabalho forçado, concentração e morte, até os experimentos pseudocientíficos para, com eles, satisfazer pérfidos desejos, culminando no assassinato cruel e violento – não é uma página em branco. Ao contrário, desde a publicação do diário de Anne Frank – uma das respostas mais poderosas ao vaticínio nazista de que as pessoas não iriam acreditar nos relatos – ou após os testemunhos de Primo Levi, Elie Wiesel e Art Spiegelman, só para citar alguns autores, a inscrição das crianças na literatura da Shoah assombra o leitor com as inúmeras formas de ferocidade com que os nazistas e seus asseclas avançaram sobre elas.

A necessidade de um olhar e de uma audição atentos aos testemunhos, factuais ou ficcionais, não pode desconsiderar os aspectos éticos e os impactos dessa violência desmedida. Desse modo, uma empatia do leitor-espectador é condição sine qua non para que essas vozes não caiam no abismo profundo da indiferença1.

Nesse sentido, bonecas quebradas, uma trouxa pequena de roupas velhas e rasgadas, tocos de lápis e borrachas usadas podem ser vistas como metáforas de um passado fraturado que deixaram marcas indeléveis sobre os corpos e as memórias daqueles que foram subjugados pelo poder desmedido. Esses objetos, como ruínas, aparecem reiteradamente na arte e na literatura pós-Shoah, dispersos ou presos em uma lista ou coleção, acabam por simbolizar as incontáveis perdas, mas, sobretudo, eles apontam para o que resta, em metonímica composição, da resistência, do afeto e das enevoadas lembranças que subjazem sobre e sob a pele.

No trabalho das artistas Giselda Leirner, Ruth Tarasantchi e Leila Danziger, objetos precários – forjados entre o lembrar e o esquecer – aparecem solitários, em meio às histórias e versos, ou em enoveladas enumerações, constituindo, na acepção lírica de Drummond, a “lição das coisas” que lembrei em epígrafe2.

A seguir a lição do poeta que considera a missão da palavra como a de ressuscitar os mortos, as três artistas que tomo aqui para análise, na dupla função criadora, que dá vida aos objetos e às coisas referenciados, fazem falar e ressignificar tanto a lembrança quanto o esquecimento. O leitor precisa desentranhar-lhes, nesse desvão, entre o sonho e a vigília, segredo, voz e testemunho, a fim de, entre outras questões importantes, reverter a sentença pouco generosa da crítica que classifica como mudez ou afasia os textos magníficos do testemunho pós-Shoah.

Nesse sentido, Leirner, Tarasantchi e Danziger, artistas de diferentes gerações, põem em cena, no Brasil, uma multiplicidade de vozes e sentidos que pode ser evidenciada em cada referência às coisas inscritas em suas obras. No trabalho delas, a presença de objetos, às vezes mínimos e translúcidos, fazem deslocar o olhar do leitor da monumentalidade para as coisas em sua mínima compleição. Destacam-se, neles, o valor do pormenor e os limites da representação, ainda que em ruínas ou resíduos que, nessa perspectiva, conformam-se como motivos artísticos que escapam a uma avaliação fechada de um mero sintoma de pane narrativa. Para o exame dessa literatura, é necessário um outro ponto de vista, um olhar que foque o objeto referenciado, não como a melancólica e canhestra tentativa de ostentar as perdas, mas como a iluminação de objetos precários que, em sua fulguração, ainda que parcial, iluminam a memória e o texto.

Para o leitor, inaugura-se uma mudança de perspectiva, de ponto de vista. Enquanto a crítica mais tradicional vê pane em relação à narrativa de testemunho, com as análises das perdas e dos danos, proponho, a partir das autoras escolhidas, e de um olhar mais sensível frente aos objetos; ampliar o ponto de observação, focar nos itens, não nas evidentes lacunas, já reiteradamente apontadas. Diante dessa estratégia, nesta abordagem, a criança e o brinquedo estarão em cena.

Walter Benjamin em “A história cultural do brinquedo”,3 afirma que as crianças teriam um prazer particular em visitar oficinas onde se trabalha visivelmente com coisas e que elas “constroem seu mundo de coisas, um microcosmo macrocosmo”4. Para o crítico:

Elas se sentem atraídas irresistivelmente pelos detritos, onde quer que eles surjam – na construção de casas, na jardinagem, na carpintaria, na confecção de roupas. Nesses detritos, elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas. Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e resíduos em uma relação nova e original.5

O conto “Chá e maçãs”, de Giselda Leirner (São Paulo, 1928), de onde retirei a primeira metáfora, foi publicado em A filha de Kafka. O texto apresenta, em uma espécie de concerto musical, duas vozes entrecortadas. Uma, não identificada, narra, em primeira pessoa, a história de Milena, uma sobrevivente de Auschwitz. A outra, também em primeira pessoa, é o relato da própria Milena. Destacam-se, em ambos os textos que compõem o conto, a vida opulenta da família, o casamento sem amor, a gravidez e o nascimento da filha de Milena; também se destacam as “imperceptíveis mudanças” que vão ocorrendo: o desaparecimento de empregados, a remoção para um gueto e, depois, o transporte, no meio da noite, num trem, para Cracóvia e, em seguida, para Auschwitz. Lá, ela sofre maus-tratos e agressões de toda espécie, à noite, dorme solitária num catre de madeira, até que, quase por milagre, a mãe junta-se a ela. O relato, porém, prossegue fatídico:

Quando fui removida do gueto de Cracóvia eu pretendia me suicidar. Não o fiz por causa dela. Quando voltava à noite para o meu barracão, esperava sempre com uma dor no coração que minha mãe lá estivesse me esperando. Numa dessas noites, quando voltei, só encontrei uma pequena trouxa em seu catre, e o silêncio das mulheres vizinhas que me olhavam como se eu não estivesse ali. A ausência tornara-se um silêncio e a morte e a vida uma só coisa.6

Se, no início, o autoextermínio não se dá por causa “dela”, a mãe, agora, sem esse esteio, Milena retorna a um estágio de dor e de desespero. A pequena trouxa, porém, está lá. Esse pequeno embrulho, cujo interior permanece vedado ao leitor, no entanto, é feito para carregar, principalmente, roupas, velhas, sujas ou para viagem. Estariam ali, invisíveis, certamente, os últimos pertences da mãe e, nessa bagagem, a marca de uma possível esperança de saída. Metonimicamente, esses pertences invisíveis irão sustentar a personagem que, após a libertação, viverá para tentar encontrar, inutilmente, a filha perdida. Forma-se, assim, uma trama entre mães e filhas, que, de alguma forma, interromperá, ou adiará, a pulsão de morte.

De Ruth Sprung Tarasantchi (Sarajevo, 1933), recorto, em A história de Ruth, publicado em 2019, um contraponto perfeito entre a poesia da escrita e a poesia da imagem,7 sobre uma boneca de celuloide:

Como na fuga não levei nenhum brinquedo, mamãe comprou para mim em Split uma bonequinha de celuloide. A dona de nossa casa em Kastel Stafilic nos deu alguns retalhos de tecido, e com eles mamãe fez um enxoval para minha boneca. Com um pedacinho de organdi, costurou um vestido enfeitado com fitas rosa. Fez uma capa com capuz e finalizou-a com um caseado no contorno. Meu preferido era o casado de veludo roxo. Um luxo! Também tricotou chapeuzinhos, sapatinhos e, com uma linha fina, fez sandálias de crochê. Para minha alegria, mamãe conseguiu agulhas finas emprestadas e foi me ensinando a tricotar um short. Como eu perdia pontos a todo momento, a peça acabou ficando com pequenos defeitos, mas me senti orgulhosa de ter contribuido para o enxoval da boneca. Nunca lhe dei um nome. Eu a chamada de beba, boneca em ioguslavo. Como o cabelo era da mesma cor do corpo, em algum momento de minha vida o pintei de marrom. Um dia a barriga amassou e me disseram para fazer um furo e colocar na água quente que ela estufaria. Furei sua bochecha, que afundou… Só fiquei satisfeita quando, anos depois, fechei o “ferimento” com chiclete, que stá lá até hoje. Escuro, parece sinal de nascença. Beba tinha uma linda cama feita com uma caixa de sapatos, além de um travesseiro e uma colcha pespontada. Desde que deixei a Iuguslávia, nunca me separei dela e de seu enxoal. Sempre levei tudo comigo, em minha maletinha de vime.8

A referência à boneca e ao seu enxoval, carinhosamente tecido pela mãe, é iluminado pela inscrição da narradora numa poderosa tradição de tecelãs e fiandeiras, as mulheres do fio, da trama, do corte e da costura. De Penélope à Aracne, todas elas apontam, de uma forma, ou de outra, para o ofício do escritor. Desse modo, quando a mãe ensina a filha a tricotar, ou quando os restos de retalhos são doados por outra mulher, a senhoria, o trabalho de cozer põe o leitor diante de uma lição importante que subjaz ao relato e que irá se traduzir na tentativa da filha de “fechar o ferimento”, metafórico, de todos os traumas que viveu.

A terceira escritora/artista que destaco é Leila Danziger (Rio de Janeiro, 1962), no poema “Quarto de maravilhas”, publicado em Três ensaios de fala, traz, de soslaio, alguns objetos de infância, dessa vez, de um menino. Diz o poema:

Esquecido pelo menino no extremo do quarto
o jogo da memória ativa nostalgias modernistas
Broadway Boogi-Woogie que se expande se retrai
em meio a tocos de lápis
borrachas usadas
e a pedra dos rins de um ruminante
que é um poderoso amuleto contra a melancolia.
Espelhos que se recusam à imagem secretam também certo mofo protetor.
Cada coisa ocupa seu justo lugar embaralhado a outras coisas
e é nocivo desfazer a solidariedade
que une os embaçados
àqueles que refletem a luz9

No poema, como se vê, o jogo da memória, esquecido pelo menino, ativa, sobretudo, um paradoxo, nesse lugar de brincadeiras, de sonho, de maravilhas. Ao retrair e expandir, no movimento singular tanto da lembrança quanto do esquecimento, as coisas listadas compõem o cenário mágico. Ao jogo, acrescenta-se: os tocos de lápis e as borrachas usadas, cuja implícita referência à escrita, e ao seu quase natural desgaste, aparece junto à uma inusitada pedra dos rins de um ruminante: o suposto “amuleto contra a melancolia”. Esses objetos conformam, estranhamente, uma lição muito clara: é nocivo desfazer a solidariedade entre coisas embaçadas e aquelas que refletem a luz. Logo, entre as coisas esquecidas, que subjazem nas sombras, e as coisas que são iluminadas pelas lembranças. Os lápis, já corroídos pelo uso, e essas borrachas, usadas para apagar possíveis erros ou lembranças infelizes, agora, na coleção, não são descartáveis, mas têm valor coexistencial com a pedra, o cálculo renal dos ruminantes, ou seja, daqueles que ruminam. Para além dos animais como o boi, a girafa, o antílope, são ruminantes aqueles que refletem e pensam com insistência, os que fazem do pensamento o repensar infinito das coisas.

Se, como avalia Benjamin, é nos detritos, ou seja, nos restos, que as crianças reconhecem o rosto que o mundo das coisas assume para elas, as artistas Leirner, Tarasantchi e Danziger, esculpem esse rosto por intermédio da escrita, da arte de recortar e colar, como já nos ensinava Antoine Compagnon.10

Na introdução a O trabalho da citação, ele relata:

Criança, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as crianças são muito desastradas até que atinjam a idade da razão, quando aprendem o alfabeto. Com minha tesoura nas mãos, recorto papel, tecido, não importa o que, talvez minhas roupas. Às vezes, se sou bem comportado, oferecem-me um jogo de imagens para recortar. São grandes folhas reunidas em um livreto, e sobre cada uma delas estão dispostos, em desordem, barcos, aviões, carros, animais, homens, mulheres e crianças. Tudo o que é necessário para reproduzir o mundo. […] É preciso consertar os estragos, colar novamente as extremidades que faltam. Mas não tenho sequer fita adesiva. Invejo esses dois grandes privilégios das pessoas adultas, a verdadeira tesoura, pontiaguda, e a verdadeira cola, que cola tudo, até o ferro.11

Após esse breve depoimento, Compagnon oferece ao leitor uma reflexão fundamental e que ilumina nossa leitura da obra de Leirner, Tarasantchi e Danziger. Para ele, o texto é a prática do papel, do exercício de cortar, colar, bricolar. Nesse sentido, as três artistas, cada uma ao seu modo, tanto na referência à trouxa de roupas sobre o catre, no conto de Giselda Leirner; quanto no relato da doação dos retalhos ou do enxoval da boneca tecido pela mãe, como na autobiografia de Ruth Tarasantchi; ou os lápis e as borrachas gastos pelo tempo, no poema de Leila Danziger, as coisas estão lá, vivas, nomeadas, recortadas da memória e inscritas em livros. É no texto, na prática complexa do papel, que a sobrevivência se realiza como citação, no desejo de satisfazer, quem sabe, a paixão infantil, muitas vezes interrompida, pelo gesto arcaico de recortar-colar. Além desse gesto inaugural do escritor, subjaz uma das preciosas lições de coisas, do mestre Drummond para o nosso tempo: a necessidade de gerir o mundo pelo verso, patrimônio imaterial de nossa humanidade, para nos ressuscitar a todos.

Notas & Referências

1. NESTROVSKI, Arthur. Vozes de crianças. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 185-205.

2. ANDRADE, Carlos Drummond. A palavra e a terra. In: ANDRADE, Carlos Drummond. Lição de coisas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 11-14.

3. BENJAMIN, Walter. A história cultural do brinquedo. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, v. 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 244-248.

4. BENJAMIN, 1987, p. 238.

5. BENJAMIN, 1987, p. 238.

6. LEIRNER, Giselda. Chá e maçãs. In: LEIRNER, Giselda. A filha de Kafka. São Paulo: Massao Ohno, 1999. p. 88.

7. TARASANTCHI, Ruth Sprung. A boneca. In: TARASANTCHI, Ruth Sprung. A história de Ruth. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2019. p. 84.

8. TARASANTCHI, 2019, p. 84.

9. DANZIGER, Leila. Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. p. 19.

10. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Clonice Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

11. COMPAGNON, 1996, p. 13.

Lyslei Nascimento é professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na FALE/UFMG.

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