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Ser do mundo, ser Minas Gerais

Visibilidades decoloniais e “Clube da Esquina” como patrimônio maior de nossa música popular

Editoria Thiago Pereira

A recente eleição de “Clube da Esquina”, obra-prima assinada por Milton Nascimento e Lô Borges, como o maior disco da música brasileira, realizada por um respeitável e volumoso júri (162 votantes, o maior reunido nesse tipo de poll no país) organizado pelo podcast Discoteca Básica confirma, no mínimo, dois pontos importantes. Primeiro, a sazonalidade de certos critérios ou apegos da crítica, já que o álbum por vezes não figurou nos primeiros lugares neste tipo de lista, realizadas anteriormente. O segundo, mais importante, é a ressonância da força criativa de um trabalho que permanece, independente de ‘competições’, como um gigante capital simbólico da cultura brasileira e, mais especificamente, como um dos maiores patrimônios imateriais da produção artística de Minas Gerais.

Sobre este último ponto, poucos discordariam que “Clube da Esquina” é o maior disco produzido por aqui (a discussão sobre ser o melhor é outra). Assim, a chancela dos votantes – bem-vinda, independentemente de ser ‘necessária’ – também chega como forma de celebrar as cinco décadas do trabalho, lançado em março de 1972. Ainda: a lista aparece pouco antes de Milton Nascimento anunciar que realiza este ano sua turnê de despedida dos palcos – que não é um adeus à música, como o próprio frisou- de maneira que outras camadas de simbolismo vêm sendo somadas ao disco e seus protagonistas em 2022.

Proponho aqui mais uma, entendendo que essa nova consagração ao álbum, foi algo que me soou surpreendente, baseado em minha experiência como jornalista cultural. Um dos aspectos que considero mais instigantes desta ‘conquista’ está no fato de que “Clube da Esquina” foi um trabalho-cena-estética-geração frequentemente esnobado ou diminuído nacionalmente. Se localmente ele foi constantemente revalidado, repactuado, referenciado (nem sempre de forma interessante ou que faça jus à sua potência como criação, diga-se) nos mais diversos vórtices geracionais ou musicais, o próprio Márcio Borges, em seu essencial livro, “Sonhos Não Envelhecem” (Geração Editorial, 1996), lembra das ‘críticas horríveis’ ao trabalho desde a época de seu lançamento. Particularmente, me lembro de um notável ranço com o álbum e a cena, entre colegas e músicos de fora, permanecidos durante boa parte dos anos 1990 e combustível para leituras ora simplificadoras, ora excessivamente carregadas de comparativos disparatados com a obra de outros gigantes, ora dispensavelmente maldosas e personalizadas com as figuras de ponta, Milton e Lô.

De modo que demorou algum tempo para se localizar com precisão o papel do álbum e dos músicos na tal linha evolutiva da música popular brasileira, e assentar, finalmente, uma percepção mais generosa e fiel ao caráter revolucionário do trabalho. Seguramente uma fatia generosa da ‘culpa’ por estas novas recepções vêm de gerações de músicos e jovens críticos – menos contaminados por certo jornalismo musical oposicionista aos cânones da música brasileira, especialmente nos anos 1980; ou por instrumentistas obcecados com determinada comunidade do gosto ‘roqueiro’, de horizontes por vezes limitados. Uma exceção que me vêm à mente é justamente a leitura de um representante da imprensa deste período, o jornalista Alex Antunes, que em uma edição da revista Bizz, escreveu certeiramente sobre o disco/cena, dizendo que “os mineiros se apropriaram de uma atmosfera da fase melódica dos Beatles para criar uma cápsula pop mineira- antimatéria da arrogância subversiva, do apetite anárquico da Tropicália. Um território ideal e protegido para talentos certos, porém tímidos como os de Milton Nascimento, mas também o de Lô Borges e Beto Guedes”.

Seguramente não é a única descrição possível, mas acho especialmente bonita e inspiradora, especialmente em seu aspecto de contextualização de época. Talvez este mix de timidez e de anti-arrogância- muitas vezes dito como um se esconder nas montanhas mineiras- foi, durante tempos, um dos motivos para um certo escanteamento do valor artístico do disco, entre outros motivos. A verdade é que soa quase absurdo escrever isso agora, à sombra de festejos de múltiplas ordens à obra (uma de minha favoritas é a paródia realizada por Djonga, maior nome da música mineira hoje, na capa de seu disco “Heresia”, de 2017), mas me lembro de um tempo em que era necessário Samuel Rosa, um dos maiores e melhores embaixadores do Clube, lembrar com tom urgente de reclamação, de que o disco ou a cena pouco ou nada apareciam, por exemplo, em um livro que durante anos fora celebrado como testemunho importante da cronologia da MPB, “Noites Tropicais”, de Nelson Motta.

Samuel estava certo e não à toa fez questão de frisar o lugar que o disco e a obra desses artistas então ocupavam na música produzida pelo Skank de então, em álbuns incríveis como “Maquinarama” (2001) e “Cosmotron” (2003), sempre acrescentando que urgia na época uma reavaliação do trabalho em nível nacional. Em outra entrevista, publicada na Revista Bizz em 2003, o músico apontou um aspecto interessante, de que, muito além da questão musical, o Clube dizia de um aspecto geográfico e comportamental, da real possibilidade de ser viável “crescendo e vivendo em Belo Horizonte, num bairro de classe média baixa, e ainda assim ser interessante para o Brasil e para o mundo. Entendi que não precisava ter nascido no Rio, em São Paulo nem em Liverpool”, o que me leva a pensar em como as questões sobre visibilidade, que contornam parte da trajetória perceptiva do disco, é também uma artéria fundamental para as pulsações artísticas ali contidas.

Visibilidade e decolonialismo

Nesse sentido, o lugar de onde se fala- uma esquina territorialmente existente em Santa Tereza e um clube afetivamente associado à pessoas talentosas – é fundamental para a compreensão de um aspecto que entendo como crucial para se pensar em uma estatura justa do álbum: sua capacidade trans discursiva, que joga luz em um certo endereçamento político-cultural que o álbum emite, pautado pela vontade de visibilizar a (s) vivência(s) latino-américas daquele período, numa chave sensível que possui uma validade impressionante até os dias de hoje. Afinal, “Clube da Esquina” é, sem dúvida, aquilo que na ciência chamariam de ‘mudança de paradigmas’ em um contexto de exploração e análise da cultura mineira e nacional: configura um fato novo, repleto de ângulagens passíveis de serem exploradas ainda mais densamente.

Uma delas, ensaio aqui, é lê-lo seminalmente como um dos dispositivos musicais fundantes de uma modernidade latino-americana entendida sob o signo da decolonialidade, como proposta por teóricos como Aníbal Quijano e Walter Mignolo, a partir de estudos realizados na sudamérica no início dos anos 1990. Mesmo décadas antes do conceito surgir, “Clube da Esquina” inspira escutas que dizem muito sobre pensar a América do Sul como espaço-tempo do pensamento e das práticas fora da posição hegemônica, desvinculada da chamada matriz colonial, mas sem rejeitá-la por completo. Pelo contrário: defende, em letra e música, uma coexistência entre mundos, através de agências de desobediência epistêmica pautada pelo resgate de conhecimentos, mas em busca de visibilizar diálogos entre distintas perspectivas, sem deslegitimar nenhuma. Tudo que você podia ser e também saber, enfim, na promoção de novos discursos, enunciados e no reconhecimento de musicalidades pertencentes a protocolos distintos dos padrões historicamente, e violentamente, constituídos.

Sintetizando, um pensar decolonial diz de uma urgência teórica: a necessidade de se constituir uma contra memória, que possa embasar contra narrativas em relação à um sistema-mundo eurocêntrico, parido a partir dos processos das invasões coloniais (muitas vezes chamadas erroneamente de ‘descobrimentos’) e seus discursos que seguem sendo reproduzidos, naturalizados e atualizados, em parte naquilo que Quijano vai definir como colonialidade do poder. Discursos que, em parte, dizem dos processos históricos, culturais e sociais estabelecidos com o colonialismo, entre eles o racismo, a xenofobia, o sexismo, o epistemicídio, etc. De maneira que os pensamentos acerca da decolonialidade se potencializam ao abarcar as muitas dimensões da vida nas modernidades possíveis e desejáveis em ex-colônias, música incluso, em sua capacidade de materializar elementos de visibilidade dessas vivências.

Trata-se de uma lente analítica na qual é possível enxergar, com mais ou menos nitidez, o gesto artístico proposto pelo Clube da Esquina. Antes mesmo do surgimento de seu álbum-símbolo, essa questão já era vocalizada em uma canção como “Para Lennon E McCartney”, presente no álbum “Milton” (EMI, 1970). Composta em 1969, na residência dos Borges em Santa Tereza (bairro de Belo Horizonte onde a esquina entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis de certa forma “centralizava” as ações do Clube), a música concatena muitos eixos da relação da produção mineira da época com restante do mundo, tomando como diapasão de centralidade cultural a obra dos Beatles. Trata- se do jovem Lô Borges- autor da música, onde Fernando Brant e Márcio Borges colocam letra- se questionando em relação ao outro, refletindo a noção de alteridade, tão cara à lógica colonial. Os versos transfiguram bem o propósito do compositor:

Por que vocês não sabem do lixo ocidental? /Não precisam mais temer /Não precisam da solidão Todo dia é dia de viver /Por que você não verá meu lado ocidental? /Não precisa medo não / Não precisa da timidez / Todo dia é dia de viver / Eu sou da América do Sul / Eu sei, vocês não vão saber / Mas agora sou cowboy / Sou do ouro, eu sou vocês / Sou do mundo, sou Minas Gerais

É um (auto) retrato relacional do Outro (entendendo-o como tudo aquilo que o ‘eu’ não se constitui), a partir do ponto de vista racializante hegemônico eurocêntrico: a metrópole, o norte global observando os mineiros como o ‘exótico’- aquilo que não os pertence, o que não querem saber, o lixo ocidental. Algo implicado já na primeira frase: a não-existência do Clube da Esquina diante dos ídolos referenciais. Uma fotografia sônica que expõe uma condição periférica e desigual, mas que propõe o contato ao diferente (Não precisa mais temer), à quebra de isolamento cultural e a vontade de se equiparar, de se aproximar, encontrar referências iguais (Mas agora eu sou cowboy).

Assim, de certa maneira, “Para Lennon e McCartney” é a antessala de um universo decolonial mais complexo, estabelecido em “Clube da Esquina”, o álbum. Este se apresenta quase que tematicamente como o ‘som da resistência’, onde o que não fora ouvido e sabido antes se multiplicam em sonoridades, presenças, discursos, etc. Teoria e práxis: o que antes era um grito por reconhecimento (Por que você não verá meu lado ocidental?) agora é um manifesto de fato, assinado principalmente por um sujeito negro (Milton Nascimento) e um branco (Lô Borges) mineiros, brasileiros, latino-americanos que se apresentam como sementes da cultura decolonial que também queriam polinizar o mundo musicalmente, reconhecendo o calibre das diferenças culturais entre periferia-metrópole, mas celebrando-as e inserindo-as em um conjunto mais amplo da música global (“Sou do ouro, eu sou vocês”). É (também) nesse lugar que “Clube da Esquina”, o álbum, pode ser notado, tranquilamente, como o maior disco da música popular brasileira.

Para citar novamente um de seus arquitetos, Márcio Borges, é uma obra cimentada num ecumenismo inter-racial, internacional, interplanetário, proposto pelas dissonâncias atemporais de Milton, achados de Chopin e o zelo beatlemaníaco de Lô Borges. E é sobre isso mesmo: transformar a canção popular brasileira, sob a transparência das janelas laterais da história e da geografia mineira, das montanhas, objetos, folias de reis, missas negras (“Cravo e Canela”, “O Trem Azul”, “Paisagem da Janela”) aliançados com o jazz (“Cais”, “Os Povos”, “Pelo Amor de Deus”), com a Bossa Nova (“Trem de Doido”) com a América Espanhola (“Dos Cruces”, “San Vicente”), com a polirritmia africana (“Me Deixa em Paz”, com a espetacular Alaíde Costa, “Saídas e Bandeiras”) e com o pop rock em voga no período (“Nuvem Cigana”, “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”) e eruditismos de corte europeu (“Um Gosto de Sol”). Tais descrições são estáticas e nada condizentes com a beleza e a potência contida neste repertório, grifo; na maior parte de suas canções, “Clube da Esquina” realiza, em verdade, uma junção de todas estas questões que aponto como formatadoras de uma voz de histórias culturais frequentemente silenciadas pela modernidade hegemônica e sua rejeição estrutural à outras formas culturais: muitas vezes, em uma única canção, tudo ao mesmo tempo.

Evidentemente, isso é apenas um começo, uma maneira de sumarizar algo insumarizável, proposto em nada menos que 21 peças musicais, espalhadas em modos absolutamente distintos do ‘fazer-música’, especificamente alocada em um território específico, onde habita-se o passado, o presente e o então futuro daquilo que seria definitivamente compreendido como ‘música pop-popular mineira’. Em uma configuração poucas vezes vista na produção nacional, a obra, de modo dialógico com o seu tempo corrente, dá vistas nítidas ao que poderíamos chamar de nosso material genético-cultural, articulando ancestralidades negras e indígenas, atravessamentos europeus e um desejo inconteste de navegar pelas veias abertas da América Latina.

Para além, concatena a realidade social e as tradições locais com a força e influência da cultura urbana internacional. “Sou do mundo, sou Minas Gerais”: o álbum nos leva a pensar na construção de um lugar próprio, esse Clube da Esquina, que reconheça endereçamentos específicos e produza estéticas percebidas como potências culturais singulares. Como o teórico Simon Frith, dimensiona, a experiência da música popular é uma experiência de identidade, porque ela oferece, tão intensamente, um senso de você mesmo e dos outros, de subjetividade e de coletividade. Assim, ‘viver’ o álbum é viver no mundo, mas é também muito sobre o modus vivendi mineiro: aciona, através de seu repertório, a experiência de compartilhar sentimentos, valores, gostos dentro deste contexto, o que pode, evidentemente, criar diferentes formas de engajamento afetivo. O que, sempre desconfiei, ajuda a explicar o ‘desprezo’ externo que percebia anteriormente a ele.

Conclusivamente, convoco o baiano universal Caetano Veloso, que ao escrever a introdução do livro de Márcio Borges, deixa claro que, mesmo por vias distintas, a maior e a melhor prática musical popular brasileira contemporânea falam a mesma língua, compartilhando modos de decolonização como agenda cultural para o mundo:

Eles traziam o que só Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de impulsos culturais do povo brasileiro, o esboço (ainda que muito bem-acabado) de uma síntese possível. Minas pode desconfiar das experiências arriscadas e, sobretudo, dos anúncios arrogantes de duvidosas descobertas. Mas está se preparando para aprofundar as questões que foram sugeridas pelas descobertas anteriores cuja validade foi confirmada pelo tempo. Em Minas o caldo engrossa, o tempero entranha, o sentimento se verticaliza. (…) Claro que, em breve, veria que muito do que nós baianos tínhamos sublinhado – a saber: rock, pop, sobretudo Beatles, além da América espanhola – também estava incorporado ao repertório de interesses de Milton. Mas todo esse conjunto de informações desempenhava funções distintas em seu trabalho e no nosso. Sem apresentar ruptura com as conquistas da bossa-nova, exibindo especialmente uma continuidade em relação ao samba jazz carioca, Milton sugeriu uma fusão que – partindo de premissas muito outras e de uma perspectiva brasileira – confluía com a “fusion” inaugurada por Miles Davis. Essa fusão brasileira desconcertou e apaixonou os próprios seguidores da “fusion” americana.

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