“E o Infinito, o que é? O Infinito não é: é sendo. O Infinito não tem dimensão. O Infinito não comporta mensuração. O Infinito é o Universo estendido. O Infinito é a vida sem nenhum sentido. O Infinito é a ressurreição. O Infinito é um corpo e uma alma ligados por uma fina conexão. O Infinito é espaço. O Infinito é o conhecimento e o desconhecimento. O Infinito é possibilidade sem plausibilidades”.1
Por Liana Portilho e Mila Corrêa da Costa
Editoria Liana Portilho
Em Admirável Mundo Novo de Huxley, um clássico da literatura de 1932, as relações sociais pós-fordismo são marcadas por uma distopia sustentada pela opressão, pela automatização e pela homogeneização dos comportamentos individuais, em busca da conformação a um ideal de regramento social coletivo. Nessa moldura fictícia futurista, são aniquiladas as diferenças, a diversidade e as experiências dos sujeitos.
Hoje, em tempos de um “novo mundo” pós-pandemia, em que o “olhar de perto e de dentro”2 da etnografia cotidiana é cerceado pela impossibilidade do encontro e do fazer coletivo presencial, o risco da objetificação e da padronização é iminente e o papel da herança e do patrimônio cultural torna-se fundante.
Patrimônio cultural é a corporificação do infinito, em seu de imenso, imensurável, intangível. É a “vida sem nenhum sentido”, é o que sengue sendo, ressureição, espaço, a fina conexão da alma, da memória e do afeto do cotidiano da vida que foi. São os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, na norma escrita da Constituição brasileira.
O reconhecimento do legado cultural coletivo, construído pelo trabalho etnográfico de diagnóstico de nossos traços cotidianos, abraça a dinâmica cultural das relações sociais travadas, das delicadezas e das formas de sociabilidade das cidades. As manifestações culturais estão imersas na realidade e captam o ritmo da vida, apreendem a lógica do espaço, envolvem-se na rotina das gentes, compreendem as teias da memória coletiva e os traços de identidade de um povo.
Embora estejamos sufocados pelo tempo das palavras mortas3, diante da iminente obsolescência provocada por essa nova realidade, ainda mais importante reviver, recontar os depoimentos que expõem as curvas das experiências havidas: a narrativa das ruas, os becos do mosaico da urbe, permeado de casos comuns tanto da ambiência do imaginário quanto do real do cotidiano, que registram a multiplicidade de significados impressos na construção discursiva da linguagem do tempo.
O patrimônio cultural é um registro do tempo e da sua identidade, das reminiscências, recordações e vivências impressas na memória. Noutro lado, o tempo, na sua dimensão intrinsecamente incorpórea, também registra e marca o que é patrimônio, dando-lhe significado no plexo dos fragmentos da pluralidade discursiva que narra o passado e o presente na “linguagem de em-dia-de-semana”.4
Nossa herança cultural é o infinito. E “o que é o Infinito? Ninguém pode dizer. Mas é possível. É possível nele se viver. É possível nele crer. É possível fazer do Infinito a medida do amor. É possível fazer do Infinito a medida da vida. É possível fazer do Infinito a própria vida nele fundida”,5 patrimônio nosso de todo dia.
Referências:
1 PORTILHO, Liana. Livro das Curiosidades e Obviedades. Belo Horizonte: Letramento; Cas’a’screver, 2020.
2 MAGNANI, José Guilherme. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 17, nº 49, junho de 2002.
3 PESSANHA, Juliano G. Província da Escrita. Revista Cult, São Paulo, n.48, p.26-31, junho 2001.
4 ROSA, João Guimarães Rosa. Primeiras Estórias. 44ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.16.
5 PORTILHO, Liana. Livro das Curiosidades e Obviedades. Belo Horizonte: Letramento; Cas’a’screver, 2020.
Liana Portilho é Procuradora do Estado e Advogada. Dentre seus vários livros publicados, o mais recente – Patrimônio Cultural e Movimento Modernista: a coisa literária como fonte da norma jurídica (Editora Letramento, 2019) – é fruto do seu doutorado na UFMG.
Mila Corrêa da Costa é Diretora-Geral da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte e Consultora Legislativa da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, além de Advogada. É Conselheira do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural e autora de publicações técnicas, com destaque para a obra O Poder Legislativo no Desenho Institucional da Política de Preservação do Patrimônio Cultural no Brasil.