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Lawrence Ferlinghetti: o poeta beat e as luzes da cidade

Editoria Ana Caetano

Há mais de um século, Walt Whitman pagou a uma gráfica no Brooklyn para imprimir a primeira edição do seu livro Folhas de relva. Ele mesmo distribuiu e promoveu o livro. No nosso século, as facilidades tecnológicas abriram o caminho para as auto-pubicações em massa. Na década de 70, no Brasil, assistimos à emergência de inúmeros livros e revistas de poesia mimeografados e distribuídos pelos próprios autores representando não só um movimento editorial independente, mas uma mudança de atitude do poeta com relação ao seu lugar na sociedade e na literatura. A chamada poesia marginal recolocou em debate a questão do fazer poético e incorporou ao poema a dicção do universo cotidiano da linguagem. Além disto, aliou o gesto de protesto político a essa postura estética.

Nos Estados Unidos, o início de uma onda semelhante de mudanças pode ser identificado bem antes, nos anos 50 e 60. Mais que uma mera consequência das facilidades técnicas, a revolução mimeográfica americana foi a face editorial de um movimento cultural mais amplo que atacou com igual vigor a sociedade de consumo e a tradição literária. Na poesia, várias linhas e estilos surgiram, sendo definidos pela famosa antologia de Donald Allen em 1960 como a Nova Poesia Americana. Charles Olson e Robert Creeley, no Black Mountain College na Carolina do Norte, Robert Ducan em São Francisco, Frank O’Hara em Nova Iorque. Mas o grupo mais significativo desse amplo e multifacetado movimento foi a chamada Poesia Beat. Desde o final da década de 50, nomes como Allen Ginsberg, Gregory Corso, LeRoi Jones, Lawrence Ferlinghetti influenciaram o imaginário poético de novas gerações de poetas não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo.

Durante as décadas seguintes, o trabalho de diferentes grupos de poetas americanos espalhados de costa a costa criou os tons de uma nova estética. Esta trazia a cultura popular, o pensamento oriental e a política contracultural juntos numa escritura que misturava o ritmo da linguagem cotidiana com os traços improvisativos do jazz. Nos seus temas e na sua atitude, a maioria das publicações da década 60 e 70 foram marcadas pelos principais pilares da contracultura, o movimento pacifista, as drogas psicodélicas, o movimento de libertação sexual. Cada um desses novos grupos gerou vários jornais, livretos e revistas na maioria das vezes artesanais e de tiragem reduzida. Em 1958, a presença beat já era evidente na revista Yugen, fundada por LeRoi Jones (que mudou seu nome para Amiri Baraka) em Nova Iorque. Ao mesmo tempo, Lawrence Ferlinghetti fundava sua famosa livraria editora City Lights em São Francisco.

Ferlinghetti foi poeta, pintor e editor. Filho de judeus sefaraditas de origem ítalo-portuguesa, nasceu em Yonkers (NY) em 1919, mas passou parte da sua infância na França. Formou-se em jornalismo pela Universidade da Carolina do Norte (1941), obteve o mestrado na Universidade de Columbia (Nova Iorque) em 1947 e o doutorado pela Sorbonne (Paris) em 1950. Serviu na Marinha durante a II Guerra Mundial. Foi depois desse período, em 1953, que ele decidiu se juntar à cena efervescente de São Francisco. Em 1953, fundou, em sociedade com Peter D. Martin, a Livraria City Lights e, em 1955, a Editora City Lights que se especializaria na publicação de poesia em edições de brochura acessíveis e populares. Segundo o próprio Ferlinghetti, em entrevista que me concedeu em 1998, as primeiras publicações da editora eram a versão americana da samisdat, palavra usada na Rússia para nomear publicações underground mimeografadas ou datilografadas de escritores dissidentes. “Nós estávamos fazendo a mesma coisa; como se estivéssemos em um país ocupado. Estávamos ocupados por um regime mercantilista, materialista, militarista – o governo americano. Nós éramos o samisdat contra a cultura comercial e militarista dominante nos Estados Unidos”.

Nesse período heroico da contracultura, o selo da City Lights levou a público os primeiros livros de Allen Guinsberg. O livro Howl and other poems os levou ambos a julgamento por obscenidade. Absolvidos em nome da liberdade de expressão, a história tornou Guinsberg um poeta famoso e estabeleceu definitivamente a City Lights como editora alternativa americana. A mesma tradição de publicação da poesia dissidente e de espaço de liberdade se manteve ao longo dos 60 anos nos quais esteve à frente da editora.

Ele próprio escreveu vários livros de poesia, alguns publicados pela City Lights, outros pela New Directions: Pictures of the gone world (1955), A Coney Island of the Mind (1958), Her (1960), Routines (1964), An eye on the world (1962), The secret meaning of things (1966), These are my rivers: new and selected Poems 1955-93, A Trip to Italy & France (1981), Wild Dreams of a New Begining (1988), When I look at pictures (1990), A Far Rockway of the Heart (1997), How to Paint Sunlight (2001), Americus, Book I (2004), Waiting Across the Landscape: Travel Journals 1960-2013 entre outros. Sua poética delicada e trágica impregnada de referências aos Estados Unidos da América lembram clássicos como Whitman e Mark Twain, seus versos encadeados em ritmo da batida do jazz evocam a afiliação beat com a música popular, a disposição entrecortada dos poemas na página e a força luminosa de muitas imagens revela influências da poesia francesa, especialmente os simbolistas e os surrealistas.

Seu livro A Coney Island of the Mind é considerado o livro de poemas mais popular dos Estados Unidos e já foi traduzido em 9 línguas. Seus quadros também já ganharam diversas exposições do Butler Museum of American Painting ao Il Palazzo delle Esposizioni em Roma. Além de poesia, ele escreveu traduções, ficção, peças de teatro, crítica de arte, narração de filmes e ensaios.

Lawrence Ferlinghetti faleceu em 22 de fevereiro de 2021 com 101 anos.

Entre os vários prêmios que recebeu, em 1998, foi o poeta laureado de São Francisco e sua marca na cidade e na poesia do século vinte continua viva na livraria e editora City Lights.

I am signaling you through the flames.

The North Pole is not where it used to be.

Manifest Destiny is no longer manifest.

Civilization self-destructs.

Nemesis is knocking at the door.

What are poets for, in such an age?

What is the use of poetry?

The state of the world calls out for poetry to save it.

If you would be a poet, create works capable of answering the challenge of apocalyptic times, even if this meaning sounds apocalyptic.

You are Whitman, you are Poe, you are Mark Twain, you are Emily Dickinson and Edna St. Vincent Millay, you are Neruda and Mayakovsky and Pasolini, you are an American or a non-American, you can conquer the conquerors with words….

Poetry as Insurgent Art, 200

Eu sinalizo para você através das chamas.

O Polo Norte não é mais onde era.

O Destino Manifesto não é mais manifesto.

A civilização se auto destrói.

Nemesis bate à porta.

Para que servem os poetas em tempos como este?

Qual a utilidade da poesia?

O estado do mundo clama à poesia por salvação.

Se você é poeta, crie obras capazes de responder à chamada dos tempos apocalípticos, mesmo que este significado pareça apocalíptico.

Você é Whitman, você é Poe, você é Mark Twain, você é Emily Dickinson e Edna St. Vincent Millay, você é Neruda e Maiakovski e Pasolini, você é Americano ou não-Americano, você pode conquistar os conquistadores com palavras…

Tradução: Ana Caetano

 

A Far Rockaway of the heart 21

heart

involuntary muscle

heart

mute lover

without a tongue

of your own

I would speak for you

whenever you

(seeing a certain someone)

feel love

A Far Rockaway of the Heart (1997

Um Far Rockway do coração 21

coração

músculo involuntário

coração

amante mudo

sem uma língua

própria

eu falaria por ti

quando

(vendo certa pessoa)

sentisses amor

Tradução: Ana Caetano

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The population explodes

and the sun wears shades

and clouds have trousers

And the Third World War

will be the war against the Third World

As homeless hordes sweep the Earth

and the sun the sun

is carried away in a cloud

And every ethnicity

insists aloud

on its won ethinicity

And the sun muddies and darkens

and the old Man in the Moon

being a negative of the sun

hides his face in a cloud

which carries him away

And the new Cold War

is the war with the great god computer

and its mantra is

Jai Ram Jai Ram CD Rom CD Rom Jai Ram

As the whole world spins

on internets and outernets

in a huge mystic void

a virtual vacum in

the huge picture-tube

of the world

And its screen is swept

with alarms and excursions

struggle and flight

where virtual armies clash by night.

A Far Rockaway of the Heart (1997)

A população explode

e o sol usa óculos escuros

e as nuvens vestem calças

E a terceira Guerra Mundial

será a guerra contra o Terceiro Mundo

Enquanto hordas de desabrigados varrem a terra

e o sol o sol

é arrastado por uma nuvem

E cada etnia

insiste em voz alta

na sua própria etnia

E o sol turva e escurece

e o velho Homem na Lua

sendo um negativo do sol

esconde sua face em uma nuvem

que o leva embora

E a nova Guerra Fria

é a guerra com o grande deus computador

e seu mantra é

Jai Ram Jai Ram CD Rom CD Rom Jai Ram

Enquanto o mundo inteiro gira

em internets ou outernets

em um monumental vazio místico

um vácuo virtual

no monitor monumental

do mundo

E sua tela é varrida

por alarmes e excursões

luta e açoite

onde exércitos virtuais colidem à noite.

Tradução: Ana Caetano

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