Fernando Armando Ribeiro*
Notável e reconhecida é a atualidade da obra de William Shakespeare, cujo quadricentenário foi recentemente celebrado em várias partes do mundo. Seu vasto espectro de metáforas e reflexões apresenta-se como uma das mais argutas análises da natureza e do comportamento humanos. Não à toa, Shakespeare é para muitos tido como o verdadeiro cânone da literatura ocidental. Afinal, o bardo é capaz de tecer, em sua literatura profundamente universalista, um denso, complexo e representativo perfil para cada uma das imagens trabalhadas. Como anota Samuel Johnson, um dos mais brilhantes comentaristas de Shakespeare, “nas obras de outros poetas, uma personagem é quase sempre um indivíduo; nas de Shakespeare, geralmente é uma espécie”.[2]
De fato, em sua vasta obra, o bardo soube explorar com maestria, riqueza e profundidade alguns dos mais relevantes temas relacionados à existência humana. Quando se fala pois de uma conexão entre Shakespeare e o Direito, este fato, por si só, já seria suficiente para demonstrar a importância de sua obra para os juristas. Afinal, o direito é uma ciência social que tem (ou deve ter) no ser humano a matriz de todas as suas normas e institutos. Do contrário, correríamos o risco o cair na visão reducionista e perigosa segundo a qual o direito seria um mero grupo de proposições escritas em determinados livros oficiais, e o aprendizado jurídico consistiria tão somente em encontrar o dispositivo correto nos códigos e leis.
Ademais, diversas obras de Shakespeare procuraram retratar questões referentes ao cenário jurídico de seu tempo. Tal fenômeno pode ser explicado devido à concorrência de diversos fatores. Na Inglaterra elisabetana, era comum que as companhias teatrais se apresentassem nas guildas de advocacia de Londres, os “Inns of Court”, e grande parte de seu público era formado de advogados e estudantes. Antes da construção do Globe Theatre, era lá também que William Shakespere pôde encenar suas peças, e essa conformação da plateia fomentou no dramaturgo o desejo de refletir e problematizar sobre questões jurídicas.
Além disso, o conturbado cenário político vivido por Shakespeare foi também poderoso catalizador para o florescimento de discussões jurídicas em seus textos. A polêmica sucessão da rainha Maria I, da dinastia Tudor, iria desaguar numa profunda celeuma de contornos políticos e jurídicos. Afinal, quem seria o (a) legítimo(a) herdeiro(a) do trono inglês? Segundo alguns, Elizabeth (que viria a se tornar Elizabeth I), apesar de ser irmã de Maria I por parte de pai, não encontrava respaldo legal como sucessora ao trono, uma vez que era filha de do rei Henrique VIII com Ana Bolena, uma “plebeia” que não possuía “sangue azul”. Assim, juridicamente, a legitimidade sucessória parecia apontar para a prima de Elizabeth, Maria Stuart, da Escócia, a qual preenchia o critério fundamental da legitimidade de sangue. Contudo, segundo estudiosos, o fato de esta última professar a religião católica teria sido o fator determinante para que a nobreza, já majoritariamente convertida ao anglicanismo, apoiasse Elizabeth I como sucessora do trono inglês. [3]
Este pano de fundo histórico aponta-nos também para uma das principais razões que levaram Shakespeare a escolher terras longínquas ou afastadas no tempo como espaço preferencial para a encenação de suas peças. Num período de tantas perseguições políticas, teria sido essa a forma genial encontrada pelo bardo para garantir sua própria liberdade de expressão.
Ademais, em Shakespeare estão presentes os grandes temas que conformam o pensamento jurídico-político ocidental. Assim é que a retórica, a propriedade, o crime, o comércio e a pena fluem por suas narrativas. A justiça e a equidade são postas em permanente tensão com a ambição, o egoísmo e a deslealdade, que, como negação da prudência, culminam nos desvios a que podemos ser levados pelo exercício do poder. Enfim, não é por acaso que cenas jurídicas estejam presentes em cerca de dois terços das peças, vale dizer, em mais de 20 peças há a inserção de temas explicitamente relacionados ao direito.
Além disso, alguns elementos relacionados à própria estrutura do teatro shakespeariano podem trazer interessantes confluências jurídicas. Como é sabido, ao contrário da previsibilidade que marcava a tragédia clássica, que girava em torno de um cosmos de sequências e personagens estabelecidos, em Shakespeare torna-se bastante complexo e problemático encontrar o seu centro. Se alguns veem aí o prenúncio para o próprio relativismo, não podemos deixar de destacar a confluência deste fenômeno também para com o direito. Afinal, a superação dos centros estruturantes da organização social da idade antiga e medieval, bem como o aparecimento do indivíduo são de vital importância para a afirmação do direito moderno. E não podemos deixar de observar que, semelhantemente a este novo modelo teatral, também no direito a verdade não é pré-estabelecida, mas deve vir à tona por meio de um processo judicial em que concorrem múltiplos vetores, valores e visões de mundo.
Segundo Ronald Dworkin, “a política, a arte e o direito estão unidos, de algum modo, na filosofia”.[4] Assim, pode-se conhecer muito sobre o direito estudando, por meio da filosofia, a arte e a literatura, em especial. Pensamos que a literatura pode mesmo nos trazer essa riqueza de olhares para perceber o mundo de forma mais rica e real, abrindo-nos para o enfrentamento de nossos pré-conceitos e não nos deixando simplesmente reféns de nossas pré-compreensões. O universo de Shakespeare é um exemplo marcante de como a literatura pode trazer ao jurista uma melhor e mais acurada percepção de importantes questões éticas e filosóficas, e um maior senso crítico (e auto-crítico sobretudo) ao se posicionar como intérprete do direito. Afinal, ali estão contidas, simbolicamente, muitas das grandes questões e dilemas com que deve lidar o jurista em seu dia a dia.
A experiência jurídica é fruto da concorrência de diversos fatores, sendo ilusório e mesmo equivocado procurar compreendê-la tão somente a partir da rigidez de um sistema formal de normas. Sua real estruturação é filha da historicidade, pavimentada pela linguagem, e inseparável das grandes contribuições que o espírito humano têm legado por meio das artes e da literatura. A linguagem é sua condição de possibilidade. E esta, forjada no solo fecundo da vida, é matizada e enriquecida pela pena dos poetas e dos escritores, redefinida e remodelada por filósofos e cientistas, conformando a “mundanidade do mundo” (Heidegger) que nos tangencia e toca. Este é o mundo no qual o Direito deve exsurgir.
Aqui, pode-se lembrar com propriedade as palavras de Dylan Thomas para se referir à poesia, e que, segundo pensamos, pode ser estendida a toda boa literatura:
“A good poem is a contribution to reality. The world is never the same once a good poem has been added to it. A good poem helps to change the shape of the universe, helps to extend everyone’s knowledge of himself and of the world around him”.[5]
As artes são um caminho vívido e marcante para que tenhamos condições de melhor aceitar e compreender as vicissitudes e também as virtudes de institutos jurídicos cuja absorção histórica, por vezes lastreada em revolucionários momentos de transformação, levam-nos a esquecer sua dimensão de profunda conquista. Passamos a tratá-los com uma quase naturalidade quando na verdade são fruto de ardorosas lutas, as quais, na maioria das vezes, precisam ser continuamente reconquistadas, desconstruídas ou redescobertas, sob pena de nos perdermos no que elas têm de mais valoroso e importante: a perene afirmação do humano.
E o humano constitui justamente a matéria prima das narrativas shakespearianas, sendo sua capacidade de sobre ele refletir e inventar reconhecidamente um de seus maiores legados. Como afirma Bloom, “o domínio que tinha Shakespeare da natureza humana é tão firme que todas as personagens pós-shakespearianas são em certa medida shakespearianas” Esta talvez seja a principal razão pela qual o palco construído pelo bardo em muito se assemelha a cenas cotidianas do mundo moderno, trazendo seus conflitos para próximo de ruas, praças e tribunais em que circulamos todos. É que “Shakespeare abre de tal modo suas personagens a múltiplas perspectivas que elas se formam instrumentos analíticos para nos julgar”.[6]
Este é, aliás, um ponto de profunda interseção entre a filosofia hermenêutica e o movimento Direito e Literatura. Afinal, tem-se aqui uma forma de abordagem do cotidiano e da história que é marcada pela particularização e concretude, sendo pois diretamente confrontante com a visão abstracionista e descritivista com a qual a ciência do Direito de feições positivistas foi construída.
Como procuramos apontar em obra recentemente publicada[7], a leitura de Shakespeare pode ser, também para o jurista, poderoso instrumento de transformação. Propiciando-nos um verdadeiro mergulho no humano, ela nos convida a imaginá-lo sob diversas perspectivas. Sem afastar-nos da efetiva concretude histórica na qual as questões jurídicas devem ser postas e solucionadas, permite-nos melhor compreender os limites de nosso próprio tempo, abrindo-nos a uma justiça por vir.
* Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG; pesquisador visitante da University of California Berkeley (EUA); Professor da PUC-Minas e Juiz do TJMG; é autor, entre outros, dos livros “Shakespeare e Cervantes: diálogos a partir do direito e literatura. Belo Horizonte: Letramento, 2016 e “Colheita”. Belo Horizonte: Letramento, 2017 (Poesia).
[2] JOHNSON, Samuel. Prefácio a Shakespeare. São Paulo: Iluminuras, 1996, p. 37.
[3] NEVES, José Roberto de Castro. Medida por medida: o direito em Shakespeare. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016.
[4] DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p. 166.
[5] Tradução: “Um bom poema é uma contribuição à realidade. O mundo nunca mais será o mesmo após um bom poema ter-lhe sido adicionado. Um bom poema ajuda a mudar a forma do universo, ampliando o conhecimento de todos sobre si mesmos e sobre o mundo a sua volta”. (THOMAS, Dylan. The collected poems of Dylan Thomas: the new centenary edition. London: Weidenfeld and Nicolson, 2014.)
[6] BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, p. 55-69.
[7] Shakespeare e Cervantes: diálogos a partir do Direito e Literatura. Belo Horizonte: Letramento, 2016.