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Presença e tempo perfurado

“A percepção é profundamente presença”
Paul Zumthor

Por Mariana Lage*
Editoria Elisa Belém
No âmbito das artes cênicas e performáticas, a presença pode ser vista como uma pedra de toque. Sem presença de palco do ator, por exemplo, o texto dramatúrgico perde em convencimento, em consistência e em capacidade de aprender a atenção e os afetos do público. O mesmo vale para o performer. Como público, sentimos, mesmo que não saibamos explicar, quando a presença do performer, do dançarino ou do ator é vacilante, inconsistente, precária. A presença torna-se então uma comunicação sutil e sensível. Não é preciso racionalizar para conseguir detectá-la – e muito se diz que é em oposição à racionalidade e à reflexão que a presença se tonifica e se sustenta no tempo e no espaço das ações cênicas ou performáticas.
Presença é um termo caro para os estudos da performance, da experiência estética e também para práticas meditativas. Para Martin Heidegger, por exemplo, que por meio do conceito de serenidade propunha um novo pensar poético, o pensamento meditativo se caracterizaria por uma ausência de intenções, desejos e confirmações de hipóteses. Esse pensar poético e meditativo é descrito em oposição ao pensar da técnica e da ciência, também denominado por pensar calculador. Enquanto o pensar calculador se move por ganhos e resultados estabelecidos de saída, o pensar meditativo se esforça para se encontrar presente diante das coisas, no potencial que elas têm de se desvelarem ao pensamento.
A serenidade seria uma pré-disposição existencial, ou ainda, uma tonalidade afetiva que nos prepararia para entrar em sintonia com as coisas, os seres e as circunstâncias que nos rodeiam. É um tipo de postura que não torna o mundo um objeto, oposto à consciência cognoscente, excêntrica ao mundo. Esse novo pensar filosófico, essencialmente poético, aconteceria, de acordo com o Heidegger, como uma abertura atenciosa, uma escuta e uma intimidade respeitosa com as coisas, os seres e o mundo.
Com relação ao tema da presença, o pensar meditativo se caracteriza como calma compostura, como espera e aproximação de uma região do ainda impensado. Seu ritmo não é o da temporalidade do imperativo do desempenho, instrumental e objetificador, cujo pensamento calculador tem um ritmo galopante, pois pautado por resultados e retornos imediatos. A temporalidade do pensamento que medita é desacelerada, pois atenta ao aqui agora da percepção e do pensamento. O pensar meditativo é a engrenagem de uma nova relação com o mundo tecnificado e tecnicizante e de uma nova filosofia para Heidegger.
Essa disponibilidade existencial, atenciosa e desacelerada que caracteriza a serenidade para Heidegger vai contribuir para o que Hans Ulrich Gumbrecht conceituou como “produção de presença” ou “efeitos de presença”: a impressão material e sensível que as coisas e as circunstâncias exercem sobre nossos corpos. Quando Gumbrecht fala sobre presença, ele a associa a termos como intensidade, epifania e graça. Trata-se de, em meio a abordagens críticas de arte e experiências estéticas, abrir espaço para uma relação não conceitual com o mundo, com a percepção estética e com obras de arte. Graça e epifania, por exemplo, se assemelham à presença por serem fenômenos que não são provocados, ou despertados, pela intencionalidade ou por desejo próprio. Não se tem uma experiência estética ou uma epifania quando se quer ter, por ativação da vontade. Não é por meio do uso do intelecto que se tem uma experiência estética, sensível ou uma epifania.
Como a serenidade de Heidegger, é preciso se colocar numa disponibilidade atenciosa e relaxada, num estado de soltura que, no entanto, não é mera passividade. Seria um estado semelhante à contemplação e ao devaneio, em que você se coloca a observar desapegadamente o que se passa à sua frente e em seu pensamento, sem vontade de conduzi-lo racionalmente. Semelhante ao estado meditativo, a presença é uma postura conquistada com o esforço reiterado até que todo esforço desapareça. O esforço está em desligar-se da mente que calcula, que oscila, que discrimina (em certo e errado, por exemplo, em polaridade dicotômicas), que categoriza, e deixar despertar a mente que observa sem apego ao fluxo ininterrupto das coisas. Esse estado de relaxamento interno que acontece tanto na meditação quanto na criação e na fruição artísticas tem no tônus da presença seu elemento comum. Uma presença tonificada vem de um estado bem desperto e atento ao que se passa, ao que precisa ser feito, sem julgamentos, sem dúvidas, sem racionalizações e especulações. Como nos ensinamentos zen, faz-se o que se deve fazer e se age a partir de uma atenção desapegada de bom ou ruim, meu ou seu, certo ou errado. Segue-se o fluxo.
Shunryu Suzuki, um mestre do zen-budismo, explica da seguinte forma: “Para os estudantes do Zen, o mais importante é não serem dualistas. Nossa ‘mente original’ inclui em si todas as coisas. (…) Isto não significa uma mente fechada e sim, na verdade, uma mente vazia e alerta. Se sua mente está vazia, está pronta para qualquer coisa; ela está aberta a tudo”. Nesse desapego da mente diante das ações realizadas, o “eu”, diz ele, se torna uma porta de vaivém. “Quando sua mente está pura e calma o suficiente para seguir esse movimento, não há nada: nem ‘eu’, nem mundo, nem mente, nem corpo. Só uma porta que vai e vem”.
A presença, no entanto, nos lembra Paul Zumthor e Jean-Luc Nancy, é um estado prestes a se perder, algo a se reinstaurar constantemente. “Nenhuma presença é plena, não há nunca coincidência entre ela e eu”, diz Zumthor, enquanto Nancy a pensa como a imanência constante dos sentidos (sensíveis). Presença como estado nascente da percepção – muito além do pensamento racional ou calculador. Constante estado nascente da existência e da experiência: uma liberdade para lidar com o que surge a partir de outra instância que não o intelecto classificante.
O desafio dessa percepção serena, que qualifica a presença tanto no ato de criação do artista quanto no ato de percepção do público, seria se colocar numa disponibilidade desapegada diante de um contexto de interrupção constante, de aceleramento do tempo e de crescente pressão para produção e desempenho, assim como de acúmulo de conhecimento. O desafio seria realizar uma ação sem qualquer ideia de ganho. Simplesmente fazer. E como diria Gumbrecht, estar à espera e atento à contingência. A epifania e a experiência estética são, para ele, contingentes: pode ser que aconteça, mas não há garantias. Talvez por causa de um cotidiano cada vez mais perfurado por dispositivos que nos interrompem e nos distraem, práticas como yoga e de mindfulness estejam tão em voga. Nos últimos anos, tem se dito que nossa atenção se tornou uma comodity. Em pouco tempo, a presença como disponibilidade relaxada, atenta e desperta será um artigo de luxo – com a diferença que não pode ser comprada.
* Mariana Lage é escritora, jornalista e professora. Doutora e Mestre em Filosofia, na linha Estética e Filosofia da Arte pela UFMG. Autora dos livros No dorso do leão, Haikais de (não) amor & outras coisas e Le Self Sélavy, organizou e traduziu Serenidade, presença e poesia, de Hans Ulrich Gumbrecht.
Referências bibliográficas:
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2010.
GUMBRECHT, H. U.. Graciosidade e estagnação. Rio de Janeiro: Editora Contraponto; Puc-Rio, 2012b.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. São Paulo: Centauro, 2005.
HEIDEGGER, M.. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
HEIDEGGER, M.. Country Path Conversations. Bloomington: Indiana University Press, 2010.
NANCY, Jean-Luc. The birth to presence. Stanford: Stanford University, 1993.
SUZUKI, Shunryu. Mente zen, mente principiante. São Paulo: Pala Athena, 2010.
ZUMTHOR, P.. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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