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Liberdade Artística e Crime: dois mundos que raramente se conectam

Autorretrato matando Elizabeth II, 2005, carvão sobre papel, 150×200 cm. Fonte: http://www.gilvicente.com.br/inimigos.html

Por Stefano Ragonezzi
Editoria Rafael Neumayr e Alessandra Drummond
Um dos preços que se paga por viver em um regime democrático é ter que tolerar opiniões divergentes. E não poderia ser diferente, já que o exercício democrático pleno reclama embate entre diferentes pontos de vista. Portanto, a democracia como valor só pode existir quando há garantia da liberdade de expressão e de opinião. Mas atualmente, quando se fala em liberdade artística no Brasil, a questão vem ganhando contornos delicados.
Recentemente, a participação de uma criança em performance protagonizada por um homem nu em um museu deu início à mais nova polêmica nas mídias envolvendo os limites entre a liberdade artística e o cometimento de atos ilícitos, como pedofilia e apologia ao crime. Tal performance foi inspirada na instalação “Bichos”, de Lygia Clark: uma série de esculturas de animais em alumínio manipuláveis pelo público. Obviamente não faltaram críticas ao artista, ao museu e à mãe da criança, por terem permitido a sua interação com a performance onde o homem nu substituía os animais daquela obra. Mas será que o episódio pode ser entendido efetivamente como crime?
Um dos maiores desafios do direito penal é interpretar um fato à luz dos elementos gerais que caracterizam o delito. Não se fará aqui a pormenorização de todos eles, eis que seria tarefa extremamente técnica e fugiria dos propósitos deste artigo. Há um desses elementos, entretanto, que merece ser analisado quando se acusa alguém de cometer pedofilia: o “dolo específico”, que, no contexto de tal crime, consiste na vontade especial, na finalidade do agente de praticar atos libidinosos e sexuais com crianças ou adolescentes.
Muita gente não sabe, mas o crime de pedofilia não está inserido no Código Penal, mas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90), que assim o conceitua:
Art. 241-D.  Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa
Adiante, o ECA traz outro conceito importante, que também ressalta a necessidade do “dolo específico”:
Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão ‘cena de sexo explícito ou pornográfico’ compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.
Ou seja, em ambos os casos acima, o legislador se vale das expressões “finalidade de cometer atos libidinosos” e “fins primordialmente sexuais”. Assim, sem entrar no mérito das condutas da mãe, dos representantes do museu e do artista, há logo que se afastar a ideia de cometimento de crime, eis que nenhum deles agiu com o dolo específico de manter atos libidinosos ou com finalidades sexuais com a criança, mas com o exclusivo (e inofensivo) propósito de realizar interações com instalação artística.
Vale também destacar que o Brasil, desde a extinção da censura em 1988, passou a contar com um sistema de classificação indicativa, em que o Ministério da Justiça estabelece diretrizes para a faixa etária apropriada para o produto cultural. Para obras ao vivo, como teatro, dança e circo, o próprio produtor ou artista faz a autoclassificação, tomando por base o manual de classificação indicativa elaborado pelo Ministério da Justiça, em conjunto com a sociedade. Contudo, essa parametrização ainda não foi regulamentada para exposições artísticas, o que atualmente está sendo discutido no país. Portanto, como a classificação indicativa nesses casos ainda não é impositiva, caberá sempre aos pais a decisão de deixar ou não seus filhos acessar conteúdo com uma classificação não indicada para menores de 18 anos, por exemplo. Também por esse motivo não seria possível responsabilizar um museu por uma performance ou obra que nele fosse exposta; sua responsabilidade se limitaria a apresentar previamente aos pais a indicação etária correspondente.
De outro lado, não seria plausível entender que ao executar a sua performance, o artista teria a intenção de enaltecer o crime de pedofilia que sequer restou caracterizado. Por essa razão, também não há que se falar em “apologia a crime”, acusação essa que se tornou moda entre os desavisados, que a aplica a qualquer situação onde haja polêmica envolvendo arte ou liberdade de expressão.
É de se notar que raramente uma manifestação pública – concreção do direito de liberdade de expressão previsto no art. 5º da Constituição – se converte para a apologia a crime, delito previsto no art. 287 do Código Penal (“fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”). A título de exemplo, vale lembrar a “Marcha da Maconha” e outras manifestações a favor da legalização das drogas no Brasil. Muitos juízes impediram, no princípio, a realização de tais manifestações, por entendê-las apologia ao uso de drogas. A questão só foi pacificada no STF, quando, em decisão unânime, seus Ministros consideraram que esses atos representavam um exercício da liberdade de expressão, nunca apologia ao crime em si. Ou seja, as pessoas estavam exercendo pacificamente sua liberdade de manifestação do pensamento, pleiteando mudanças nas leis relacionadas ao uso da maconha.
Por isso, é sempre importante lembrar que não existe na Constituição princípios absolutos, eis que todos eles são relativizados pelo contexto em que se enquadram. O próprio direito à liberdade artística em algumas situações deve ser posto na balança e adequado a determinados referenciais, não podendo servir como pretexto para perpetrar abusos. Diverge daquele que sai nu pelas ruas com o fim de causar pudor ou constrangimento ou mesmo mal-estar a alguém, o que utiliza de sua nudez pessoal em uma apresentação teatral ou artística, por exemplo.
De fato, não há dúvidas de que adotar indiscriminadamente o critério de proibição e de censura onde haja temas polêmicos, ainda mais ao argumento de praticar crime ou apologia a crime, representa não só um retrocesso — já que impede novas reflexões, ofuscando o espírito provocativo e limitando o potencial criativo, atributos que fazem parte da essência da arte e da liberdade de expressão como instrumentos de transformação social — mas, também, um absoluto desconhecimento do direito penal.
Portanto, as pessoas cujos valores não estejam alinhados com determinada proposta artística devem ter seu ponto de vista respeitado e poder exercer a sua liberdade de discordância. O que não se pode admitir é que essa mesma opinião transmude-se para o campo da censura e da proibição, ainda mais por meio da acusação de prática de atos criminosos pelos artistas, pelos curadores das exposições e pelos dirigentes de museus: ao contrário, tal acusação infundada, essa sim, poderia ser considerada crime contra a honra, mais especificamente o de “calúnia”, conceituado no art. 138 do Código Penal como sendo “Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime”.

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