Por Márcia Charnizon
Ler Patrick Modiano é ter uma aula sobre fotografia.
O autor tem a Paris dos anos 30 como tema constante de sua obra. Em seu discurso no Prêmio Nobel de Literatura, em 2014, ele esclareceu que “o fato de ter nascido em 1945, num momento de destruição e desaparecimento de cidades e populações inteiras, certamente o tornou sensível aos temas da memória e do esquecimento”.
A fotografia, portanto, por sua relação intrínseca com essas questões, surge como um dos suportes prediletos de Modiano para trazer aqueles temas à tona.
Entre as décadas de 1930 e 1950, numa Europa devastada pela guerra, surgia a fotografia humanista, que buscava na rotina das pessoas uma dignidade perdida. Os fotógrafos procuravam colaborar, à sua forma, com a reconstrução simbólica e moral de um país e seus habitantes. Em cena, citando somente alguns poucos nomes, entravam Bresson, Sabine Weiss e Werner Bischof, Man Ray, Doisneau, Andre Kertesz, Brassai e Robert Capa.
Referências à fotografia humanista na obra de Modiano aparecem, por exemplo, de forma clara no livro Chien du Printemps, onde o autor usa nomes e histórias reais para construir o personagem Jansen, um fotógrafo parisiense amigo de Robert Capa. Jansen nos ensina que “é preciso capturar as coisas com doçura e em silêncio, senão elas se retraem”, frase que nos remete ao momento decisivo de Bresson.
Aproximação do romancista com a fotografia não acontece somente pela inserção do tema em suas obras, mas também como coautor no livro Paris Tendresse, que unia sua escrita à fotografia de Brassai da Paris dos anos 30, e no prefácio, em 2003, do livro da fotógrafa Virginie Chardin, intitulado Paris Photographique: Cent histoires extraordinaires de 1839 à nos jours.
A estreita ligação que o autor tem com a linguagem fotográfica permite a ele construir textos que mostram um entendimento da luz como discurso poético: “(…) experimentei um estranho mal estar. Ele vinha de certa luminosidade particular do filme, da própria película. Um véu parecia cobrir todas as imagens, acentuava os contrastes, apagando-os, às vezes numa brancura boreal. A luz estava ao mesmo tempo muito clara e muito escura, sufocando as vozes, ou tornando seu timbre mais forte e inquietante”.
Se muitas vezes nos colocamos como detetives diante uma fotografia, procurando pistas, traços ou marcas, a fim de, em algum momento, nos reconhecermos naquelas memórias e trazer à tona, de alguma forma, nossa história pessoal, Modiano parece também fazer o mesmo em sua escrita. Por meio da literatura, ele se serve da história de outros para reconstruir a sua própria. No livro Dora Bruder, por exemplo, a partir da descoberta ocasional de um anúncio de jornal que dizia do desaparecimento da garota Dora, o narrador inicia uma busca pela história daquela menina judia durante a ocupação nazista. Utiliza-se de um recurso no qual o próprio narrador torna-se contemporâneo dos pais de Modiano. Mais do que “aquilo foi”, em tempo passado, o encantamento passa por um “o que teria sido” imaginário. Em Dora Bruder, Modiano é um detetive em busca da parte de sua história que precede suas próprias memórias. Quer ir ao encontro de um passado que antecede seu nascimento, e por isso passa a ser um inventor de probabilidades, da mesma forma que fazemos diante uma fotografia, seja ela antiga ou não.
Entendendo a fotografia como fragmento visual, não podemos nos esquecer de que, numa imagem, sempre existiu um tempo anterior e outro posterior ao momento congelado, e nunca saberemos o que se passou de fato. Portanto, na medida em que o mistério da fotografia é sua propriedade polissêmica, ela abre espaço para realidades inventadas e para a fabulação. Em algumas obras, o narrador nos lança imagens incompletas, e, no percurso do livro, vai tentando desvendá-las – de imagem latente a imagem visível, como em um laboratório de fotografia analógica.
Modiano nos diz que “sempre, diante uma imagem, estamos diante do tempo”. Em Chien du Printemps, o narrador deixa clara essa ideia: “Guardei uma das fotos. Sentamo-nos no banco, minha namorada e eu. Tenho a impressão de que são outras pessoas, quer por causa do tempo transcorrido, quer pelo que Jansen captou com sua objetiva e que nós, naquela época, não teríamos visto mesmo se nos olhássemos no espelho: dois adolescentes anônimos e felizes”.
Ao visitarmos e revisitarmos uma mesma imagem através dos tempos, o que está em jogo a cada vez, por detrás do nosso olhar, são as demandas e desejos do tempo presente. E é essa reinvenção da vida que se faz importante. A obra de Modiano nos convida a isso. Como se ele nos dissesse “Vem cá, senta aqui, esse tema é pungente”.