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Henriqueta Lisboa múltipla

Por Ana Elisa Ribeiro

Duas questões surgiram na escolha desta poeta para esta coluna: o que é o contemporâneo? Em que medida a poesia de Henriqueta Lisboa atende ao tema do vazio, proposto para esta edição? A poeta mineira, nascida em Lambari (1901 – BH, 1985), batalhou para esvaziar suas gavetas e para preencher uma lacuna da literatura brasileira do século XX, qual seja, a escassez de mulheres entre as vozes a serem canonizadas e celebradas. Autora de duas dezenas de livros, a maioria de poesia, foi a primeira escritora a assumir uma cadeira na Academia Mineira de Letras, em 1963.

Ao longo de sua vida, Henriqueta Lisboa foi, além de poeta, ensaísta, tradutora e antologista. Excedia em muito sua atuação como escritora, provocando também encontros entre intelectuais, trocando extensa e organizada correspondência com artistas do Brasil e da América Latina, além de ser professora. Seu acervo está sob a guarda da Universidade Federal de Minas Gerais, no maravilhoso espaço do Acervo de Escritores Mineiros, que ocupa, na forma de um arquivo-museu, parte de um dos andares da Biblioteca Central do campus Pampulha. É lá que pesquisadores e pesquisadoras de toda parte vêm buscar documentos que nos ajudam a preencher lacunas historiográficas e literárias sobre nossos escritores e escritoras, que, afinal, são nós em uma extensa rede, sempre muito ativa e pulsante. Henriqueta Lisboa, sem dúvida, era um desses nós pulsantes que faziam a engrenagem da literatura girar, no mínimo em Minas e no Brasil. Como poeta, foi entendida como uma artista moderna, uma voz melancólica e marcada. A despeito de ter produzido muito, é menos lembrada do que gostaríamos, inclusive em livros didáticos e na historiografia literária canônica.

Publicava em tiragens relativamente baixas, mas sua poesia circulou, para os padrões da comunicação de seu tempo pré-internet. Alguns de seus livros foram reeditados pela Editora da UFMG, como é o caso de Flor da Morte, originalmente lançado em 1949. Em 2020, finalmente, as lacunas sobre a obra de Henriqueta foram definitivamente preenchidas com o lançamento de um box com sua obra completa pela editora Peirópolis (SP). A organização cuidadosa é dos professores Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda, que atuaram como curadores e editores. A versão impressa é um verdadeiro tesouro, mas o projeto dá acesso gratuito ao rico material digital por meio do site https://editorapeiropolis.com.br/henriqueta-lisboa.

Henriqueta Lisboa é uma poeta contemporânea não apenas porque viveu quase todo o século XX, mas porque dialogou com nosso tempo, foi persistente em sua vontade de ser poeta, se movimentou, sempre desde Belo Horizonte, numa rede de contatos que aparece quando pesquisamos sua vida e obra. Em uma de suas cartas, quando já idosa, ela se pergunta se teria valido a pena a persistência que a moveu na vida literária. Talvez devamos a ela uma resposta, que hoje nos parece óbvia: valeu sim, Henriqueta.

 

Em sobressalto

As notícias me sobressaltam. Dia a dia
cada vez mais terríveis.
Brotam da terra pelos poros
entram pela janela em silvos ásperos
fazem pilha no chão em letras tortas
caem das nuvens em mortalhas.
E já são outras realidades apostas
ao retoque dos memorandos
às interpretações da ribalta
ao sortilégio da casa dos contos
ao ruminar dos bois — fuga e refúgio.
Em confronto são dúbias
precipitam-se acotovelam-se
em contramarcha se repelem.
Na deturpação do humano
anunciam com alvoroço
através de pinças de fogo
em cartazes de gelo
— o suicídio da multidão em nome de Deus
— o império do vício em nome da Arte
— o sequestro do juiz em prol da Justiça
— o arremesso de touros em via pública
para a alegria dos que se salvam.

Recuso-me a acreditar nas notícias
mas elas se impõem de cátedra
com implacável desfaçatez
talvez para convencer-nos
de que somos todos culpados.
Agem assim como tóxicos
impunemente sorvidos
nas delongas do tédio.
A busca de notícias é um mórbido
caminhar para a cruz
Sem embargo as procuro com empenho
na expectativa tantas vezes vã
de que à noite se mudem
na reparação no contraveneno
das notícias colhidas pela manhã.

Publicado no livro Pousada do Ser (1982).

 

Do supérfluo

Também as cousas participam
de nossa vida. Um livro. Uma rosa.
Um trecho musical que nos devolve
a horas inaugurais. O crepúsculo
acaso visto num país
que não sendo da terra
evoca apenas a lembrança
de outra lembrança mais longínqua.
O esboço tão-somente de um gesto
de ferina intenção. A graça
de um retalho de lua
a pervagar num reposteiro
A mesa sobre a qual me debruço
cada dia mais temerosa
de meus próprios dizeres.
Tais cousas de íntimo domínio
talvez sejam supérfluas.
No entanto
que tenho a ver contigo
se não leste o livro que li
não viste a rosa que plantei
nem contemplaste o pôr-do-sol
à hora em que o amor se foi?
Que tens a ver comigo
se dentro em ti não prevalecem
as cousas — todavia supérfluas —
do meu intransferível patrimônio?

Publicado no livro Pousada do Ser (1982)

 

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