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A construção do medo em de Edgar Allan Poe e Moacyr Scliar

Julio Jeha e Lyslei Nascimento

Na literatura como em outras artes, o medo é um fato estético que possui númeras formas e estratégias para estimular o leitor. Se, por um lado Jean Delumeau, denuncia como simplista pensar que “toda civilização é o produto de uma longa luta contra o medo”,[1]muito antes dele, Howard Philip Lovecraft argumentava que “[a] emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o tipo mais antigo e mais forte de medo é o medo do desconhecido.”[2]Ao tematizar essa emoção básica para a sobrevivência, a literatura não só chama a atenção para uma tomada de consciência de um perigo, mas também lança luz sobre a imaginação e a capacidade desse discurso estimular o prazer.

Um aforismonorte-americano, ecoando um ditado inglês, assegura que o lar de um homem é o seu castelo, o que talvez tenha levado os autores do gótico e da ficção de terror a transformar o local de segurança e acolhimento em seu oposto, um cenário de incerteza e sofrimento. Sua importância para esse tipo de literatura é tamanha, que Stephen King vê nele um elemento estruturante e o batiza de “Lugar Mau”.[3]

O conto de EdgarAllan Poe que melhor exemplifica a casa como lugar do medo é “A queda da Casa de Usher”, a história dos gêmeos Roderick e Madeline Usher, os últimos descendentes de uma família antiga.[4] Os primeiros parágrafos da história são dedicados a criar um clima gótico – a mansão, centenária e decadente, é misteriosa; a paisagem é estéril, e o lago defronte, estagnado. Do lado de fora, uma tempestade estrondeia; dentro, há salas macabras cujas janelas se abrem de repente, e o vento apaga velas. Ouvem-se rangidos e gemidos, os moradores sofrem de doenças raras, e o cadáver vivo de Lady Madeline perambula pelos corredores.

No conto, Poe emprega seu princípio de composição que afirma que tudo na história deve contribuir para um único efeito.[5]A certa altura, Roderick pressagia: “sinto que chegará, mais cedo ou mais tarde, o período em que deverei abandonar, ao mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com esse fantasma lúgubre: o MEDO”.[6]Visto que Poe escolheu essa emoção para ser o efeito principal alcançado, cada palavra, imagem e descrição tem a função de criar um terror abjeto tanto no narrador como no leitor. Desde o início, passando pela apresentação do exacerbadamente sensível Roderick Usher, até a terrível conclusão com o aparecimento da cataléptica Lady Madeline, todos os elementos textuais se juntam para criar a ansiedade que acompanha aquele “fantasma lúgubre: o MEDO”.

Mais do que a trama propriamente dita, são a unidade de efeito e uma ambiguidade pervasiva que tornam esse contomemorável. A trama se passa, como em outros textos de Poe, no que parece ser uma Europa medieval, cenário caro aos autores românticos. À medida que o narrador se aproxima da mansão melancólica, cai a noite e “um sentimento de angústia insuportável” invade-lhe o espírito. A combinação da casa com a paisagem mórbida, os muros sombrios e os troncos de árvores mortas cria “uma enfermidade decoração, uma irreparável tristeza no pensamento”.[7]Está dado o clima amedrontador que perdurará durante toda a história.

O medo se deve em muito da sensação de claustrofobia magistralmente criado por Poe na história. O pesadelo mais horripilante que ele conjurou foi, sem dúvida, “O enterro prematuro”, cujo narrador padece de catalepsia e fica paranoico com medo de ser enterrado vivo, um temor comum no final do século 19.

Poe também obscurece a distinção entre os seres vivos e os objetos inanimados ao associar a casa física dos Usher coma sua linhagem. Esse apagamento de fronteiras condiciona o destino da família. Como eles não têm ramos duradouros, há uma sugestão de que toda a transmissãogenética ocorreu incestuosamente sob o domínio da casa. Pode-se supor ainda que o campesinato confunde mansão e família porque a estrutura física determina os padrões hereditários da família.

A casa assume mais um sentido, o de morada eterna, eufemismo que se aplica aos túmulos, mas que na narrativa se mostra como concretização de uma metáfora. Essa característica deconfinamento, própria de tumba funerária, contamina os personagens e os condiciona física, moral e emocionalmente. A lógica simétrica e claustrofóbica do conto leva à destruição mútua, tanto do irmão pela irmã, quanto da casa pela família. Com a morte dos últimos remanescentes dos Usher, não há sentido na continuação da casa, que se desmorona e afunda no pantanal lúgubre.

Descendente do castelo assombrado europeu, a casa assombrada desempenha uma função estruturante primordial no gótico norte-americano. Tanto o castelo quanto a casa incorporam o lugar mau. “E é ali que, à medida que a tradição gótica europeia do pecado institucional (aristocrático e eclesiástico) deu lugar a uma tradição americana mais preocupada com o pecado pessoal de seus colonos puritanos, o castelo cedeu lugar à casa”.[8] A mansão dos Usher, com seu ar aristocrático decadente, sua localização incerta e seu foco nos problemas pessoais dos seus últimos moradores, faz a transição entre o lugar mau europeu e o norte-americano.

No Brasil, é Noite na taverna (Álvares de Azevedo, 1855)que inaugura uma tradição literária na qual um edifício é o lugar da narrativa e do medo. No texto, a partir de uma percepção estranha e noturna, “a vida se transfigura”, afirma Adonias Filho, “altera-se a própria realidade”, que “ressurge em um território quase de pesadelo pela carga dramática das imagens”.[9] A taverna, ao contrário da residência, é lugar de passagem, de ébrios, insanos e mulheres públicas, propício a relatos sobre necrofilia, antropofagia, assassinato, infanticídio, suicídio e outras transgressões, que têm por objetivo provocar medo no leitor. Sob influxos malignos, a taverna se mostra “fruto de uma gênese tormentosa”,[10] um lugar mau.

Quase cem anos depois, em A menina morta (Cornélio Pena, 1954) e Crônica da casa assassinada (Lúcio Cardoso, 1959), a casa familial se apresenta como um cenário de crimes, pecados e transgressões e, antropomorfizada, revela as monstruosidades que ali habitam. A decadência do poder econômico, dos chamados valores morais e nobres, toma o palco da escrita e expõe as entranhas corroídas por delitos inconfessáveis.

Contrapondo-se a essa tradição que elabora o medo pela ficção, Moacyr Scliar (1937-2003) constrói uma revisitação irônica ao tema da casa assombrada em “Trem fantasma”.Com cerca de uma página e meia, o texto deixa vislumbrar a perícia do escritor em manejar o conto que tem o medo associado a uma casa, que, tradicionalmente, inspira segurança. No entanto, o espaço doméstico será reconstruído como o palco de um teatro e ampliará seus contorno são provocar medo e prazer.SegundoRegina Zilberman, as personagens estão diante de um espetáculo, cuja finalidade precípua é a de estimular as emoções fortes, realizando de maneira catártica a propensão a uma atividade destruidora.[11] Em níveis distintos, o conto de Scliar revela o medo associado ao prazer, e a representação desse medo é explicitada na ficção. No campo semântico do teatro– cortina, maquiagem, palco – surgem as monstruosidades, que sugerem os jogos de cena próprios da ilusão. Ao conceber espaços lúdicos, como o parque, o cinema ou a literatura, a narrativa deixa vislumbrar a atração/repulsa que permeia esse lugar de divertimento. Para fazer tremer ou rir, lugares ambíguos, como o trem fantasma, traduzem o que poderia ser uma relativização do medo, no enfrentamento lúdico da morte, bem como permitem ao leitor tomar consciência do texto como representação.

Narrado em primeira pessoa, “Trem fantasma” introduz, de chofre, a sentença fatal: “Afinal se confirmou: era leucemia mesmo, a doença de Matias, e a mãe dele mandou me chamar”.[12]Ao se abrir com o advérbio “afinal”, essa declaração dá o tom da narrativa.Nessa condenação à morte, revela-se que esse não é o início de uma luta na qual se poderia ter alguma esperança; ao contrário, o leitor deverá estar consciente de que o ponto escolhido para o início da narrativa, a partir do qual ele tenha acesso à história, é a morte. O inapelável coloca o leitor diante do inevitável: há uma doença, o doente é uma criança, e ela vai morrer. O câncer, nesse contexto, uma sentença de morte, é uma palavra de mau presságio, abominável, repugnante aos sentidos, mas que aparece no conto sem subterfúgios ou eufemismos.[13]Tampouco transparece sentido moralista ou punitivo na doença que ali se apresenta implacável. Também não há revolta, lamúria ou remordimento. Desde o início, o leitor sabe da verdade inexorável e não há como dela escapar. Qual seria, portanto, o sentido de tal narrativa?

A frase inicial é perturbadora, mas prepara o leitor para outras informações importantes: o nome do menino doente é Matias, ele tem nove anos; a mãe dele, que não é nomeada, quer realizar o desejo do filho de ir a um parque e, nesse lugar de diversão e prazer, embarcar num trem fantasma. Ela manda chamar o narrador, também anônimo, que, na ocasião, tem dez anos e é vizinho da família liderada por essa mulher, que se apresenta, desde o início, de uma forma surpreendente.

O desejo de Matias é simples, mas não sua execução. Doente, ele não pode ser levado ao parque e ao trem fantasma. Sendo assim, seria preciso uma“improvisação na própria casa, um antigo palacete nos Moinhos de Vento, de móveis escuros e cortinas de veludo cor de vinho.” Além do vocábulo“improvisação”, que põe em jogo todo um campo semântico do teatro, da representação, ainda que sem um preparo prévio, há referência ao palacete, aos móveis e às cortinas de veludo, símbolos da riqueza da família que, entretanto, não salvará o doente.

O narrador acrescenta:“A mãe de Matias deu-me dinheiro […]”.[14]A partir dessa informação, o leitor estará diante do plano da mãe. O narrador deve, vicariamente, ir ao parque, embarcar no trem fantasma, várias vezes, paras e inteirar de tudo. Assim, antes de referir-se metalinguisticamente ao seu relato, o narrador assume provisoriamente o lugar de Matias no brinquedo. Desse modo, escrever, fazer um esquema, organizar os dados são atitudes do menino, no passado, longe do medo que o trem fantasma poderia lhe causar, e do escritor, no presente da narrativa.

Com toda a encenação preparada, “A sessão teve lugar a 3 de julho de 1956, às vinte e uma horas”.[15]O evento, com data e hora, reverberam na memória do narrador, que acrescenta:“O minuano assobiava entre as árvores, mas a casa estava silenciosa”.[16]O barulho do vento frio e forte que sopra do sudoeste, durante o inverno, noSul do Brasil, como uma espécie de trilha sonora, marca, não só geograficamente o espaço da narrativa, mas traz a informação do elemento sonoro na construção do medo.

 A arte flerta com a morte por intermédio do teatro dentro do conto, quando a ficção vive dentro da ficção, como queria Borges.[17]O trem fantasma está dentro do parque de diversões assim como dentro da casa da família de Matias está o teatro e dentro dessa narrativa a metalinguagem, num efeito de mise en abyme. As luzes se apagam na narrativa, mas para o leitor, elas se acendem. O narrador empurra ocarrinho de bebê onde Matias está. A casa, com suas cortinas de veludo, tão próprias ao teatro, se abre como um palco e a cena do trem fantasma põe-se e mandamento com seus inusitados personagens:

A porta do salão se abriu; entrei por ela. Ali estava a mãe de Matias, disfarçada de bruxa (grossa maquiagem vermelha. Olhos pintados, arregalados. Vestes negras. Sobre o ombro, uma coruja empalhada.Invocava deuses malignos).[18]

Nessa casa/salão/palco, o narrador e Matias são expectador e se tripulantes de uma fantasia que encena o terror e o medo. O leitor sabe, o narrador também, que se está no reino da fantasia. Matias não completamente. Ele grita de susto e de prazer.

A mãe, disfarçada de bruxa, ostenta a representação do estereótipo do malvado feminino que tanto aterrorizou o mundo ocidental. Delumeau chama a atenção, no seu estudo dedicado ao medo, para a relação da cultura e do poder com o medo do feminino. Junto aos idólatras, aos muçulmanos e aos judeus, a mulher foi considerada, durante séculos, “agente de satã”.[19]No conto de Scliar, esse estereótipo é, no entanto, revirado pelo avesso. Algo, portanto, da ordem do diabólico é escamoteado e o protagonismo dessa mãe sábia e guardiã do filho irá se contrapor à caricatura da bruxa, em uma iconografia frequentemente associada ao mal e ao medo.

Evidencia-se uma ambivalência tanto para fazer tremer quanto para fazer rir. O mal é caricaturad pela mãe disfarçada em bruxa ou feiticeira, mas subvertido pelo exagero, pela inscrição do teatro no contexto hostil da doença. Certamente que esse não é um riso agressivo, fácil ou desbragado; ao contrário, provoca-se o que poderia ser entendido como um riso reflexivo, de compreensão irônica do amor materno ali travestido em maldade.

A família se une na representação do grotesco, no teatro orquestrado pela mãe: a bruxa, o enforcado, o esqueleto, as apunhaladas. Em primeiro lugar, destacam-se as marcas da performance dessa galeria de tipos: a língua de fora, o rosto maquiado; a tinta fosforescente; o sangue de galinha que criam medo e prazer no menino doente no enunciado, mas, num segundo nível, ao narrador, e em outra instância, ao leitor, que sabe da performance, um prazer é garantido, o da ficção apontando para uma forma de enfrentar a morte.

De Poe a Scliar, a representação do medo e de casas assombradas, conta com um pacto sempre renovado entre escritor e público com a ficção. Se na arquitetura dos pesadelos de Poe, a duplicação, o mise enabyme e o sombrio põem o leitor diante de uma atmosfera de medo, no conto de Scliar, esses mesmos elementos, acrescidos da maestria de construção do texto breve, enxuto, apontam para a superação dos medos e uma forma lúdica de enfrentara morte a partir da farsa teatral, da inversão cômica. Trata-se, aqui, de uma forma de jogar com o medo da morte, não de se deixar paralisar pela constatação da finitude humana.

Em Scliar, o efeito lúdico, apesar da representação do horror, é teatral, vicário, e surge em um momento em que se está preso numa situação limite – a doença e o consequente medo da morte. Ocorre o que poderia ser visto como uma abertura, a criação simbólica do perigo, que proporciona “um pequeno ganho de prazer”.[20]Diante, portanto, do desconcerto do mundo, a representação teatral do medo, abre espaço para irrupção de uma possibilidade de desvio. Nesse sentido, a ficção surge “como um meio de obter prazer apesar dos afetos dolorosos que interferem com ele; atua como um substitutivo para a geração destes afetos, coloca-se no lugar deles”.[21]Esse distanciamento crítico dá-se a partir do teatro dentro do conto, ou da ficção dentro da ficção, um recurso para auferir prazer do medo, diante da inevitabilidade da morte.


[1] DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 12-13.

[2] LOVECRAFT, H. P. Supernatural horror in literature. 1927. New York: Dover, 1973, p. 12.

[3] KING, Stephen. Danse macabre. New York: Everest House, 1981. p. 252.

[4] POE, Edgar Allan. A queda do solar de Usher. In: _____. Ficção completa, poesia e ensaios. Org., trad., anot. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 244-257.

[5] POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: _____. Ficção completa, poesia e ensaios. Org., trad., anot. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 911-920.

[6] POE, A queda do solar de Usher, p. 248.

[7] POE, A queda do solar de Usher, p. 244.

[8] BAILEY, Dale. Bringing the horror home. Nightmare, n. 7, Apr. 2013. Disponível em: <http://www.nightmare-magazine.com/issues/issue-7-apr-2013/>. Acesso em: 19 dez. 2016.

[9] FILHO, Adonias. Apresentação. In: AZEVEDO, Álvares de Azevedo. Noite na taverna. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995. p. 6.

[10] CALVINO, Italo. O castelo dos destinos cruzados. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 156.

[11] ZILBERMAN, [s.d.], p. 7.

[12] SCLIAR, 2003, p. 316.

[13] SONTAG, 2002, p. 13.

[14] SCLIAR, 2003, p. 316.

[15] SCLIAR, 2003, p. 316.

[16] SCLIAR, 2003, p. 316.

[17] BORGES, Jorge Luis. Quando a ficção vive na ficção. Trad. Sérgio Molina. In: ______. Obras completas IV. Vários tradutores. São Paulo: Globo, 1999. p. 504-506.

[18] SCLIAR, 2003, p. 316.

[19] DELUMEAU, 1993. p. 320.

[20] FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Vários tradutores. ESB, v. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p. 13-265.

[21] SALLES, Ana Cristina Teixeira da Costa. Humor: dor e sublimação.Reverso. Belo Horizonte, v. 33, n. 61, p. 21-27, jun. 2011. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952011000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 21 jan. 2017.

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