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A arte em tempos “jenecis”.

Luciana Salles

Se existe algum mal em trabalhar cotidianamente com programação cultural, esse talvez resida no excesso de discursos que pousam sobre seus olhos. Um exagero que traz consigo não somente a inviabilidade em assimilar tantos desejos, mas sobretudo a flagrante perspectiva da repetição de formatos e da fartura de adjetivos, por tantas vezes utilizados a esmo.

Nesse universo de opções, igualadas em atmosferas oníricas e tons pastéis, reina a pretensão embalada pela histeria da gratidão e da gentileza. Eu quase posso ouvir o som do ukulelê brotando das páginas em PDF, trilha sonora perfeita para coroar a fofurice anacrônica que parece imperar em tempos “jenecis”.

Não raro, duvido da minha capacidade de discernimento em meio a tantas promessas de felicidade. Atribuo ao meu sarcasmo ou rabugice a dificuldade em encontrar algo que rasgue os sentidos do espectador, com ou sem sutileza. Um refresco infernal que traduza, efetivamente, o momento em que vivemos e drible a disfunção narcotizante que acompanha o excesso de informação.

(Abro aqui um parênteses para um paralelismo histórico, ainda que simplista, quando barquinhos deslizantes silenciavam os gritos que brotavam dos porões da ditadura. Toda arte que não se prestasse a protestar contra o regime era considerada menor ou alienada. Tropicalistas, socorrei-nos! Hoje a Bossa Nova é aclamada em todo o mundo como um dos movimentos mais importantes da cultura brasileira. Terá a fofurice a mesma importância em alguns anos?)

Garimpar é tarefa exigente. Com paciência, em meio a um lamaçal asséptico, o ouro sempre surge. Foi assim com “Nelson por ele mesmo”, leitura dramática de Fernanda Montenegro, a partir do livro homônimo organizado por Sônia, filha de Nelson Rodrigues. No palco, uma mesa de escritório e uma cadeira ocupada por Fernanda, vestida de preto, cabelos brancos presos num coque. Assim, sem pirotecnia, mergulhamos no universo de um dos maiores autores brasileiros, a despeito de todas as polêmicas que suscita e da pecha de reacionário que sempre o acompanhou. Na voz inconfundível de FernandaMontenegro, desvela-se o cronista excepcional, sem deixar de colocar na mesa assuas contradições. O encontro da simplicidade com a exuberância. A dedada nos olhos tão necessária, que levou a plateia ao estado de comoção e enlevo que só com a arte (e com a Fernandona) é possível alcançar.

Sim, não é preciso garimpar para chegar à Fernanda ou Nelson, pois estes são pedras brutas que saltam aos olhos. Mas, as surpresas estão sempre acontecendo. A escritora Amara Moira, primeira mulher trans a defender doutorado no Brasil (Unicamp), é uma delas. Em seu perfil no twitter ela, que se auto descreve como “travesti, putafeminista e doutora”,  é autora de “E se eu fosse puta?” (Hoo Editora, 2016) e co-autora de “Vidas Trans –a coragem de existir” (Astral Cultural, 2017), duas publicações atrevidamente necessárias para mostrar a vida como ela é.

A arte não está restrita ao sutil. Muitas vezes é preciso desnudar-separa o cumprimento do exercício artístico, seja como criador ou apreciador, e tirar o véu da hipocrisia para contar ou ouvir sobre o seu tempo. É preciso, sobretudo, ter disposição para vasculhar e refletir sobre os conteúdos trazidos a público, seja em espaços culturais ou em mais uma festa literária, entre os muitos espalhados pelo Brasil e pelo mundo. O quanto dizem de nós?

Dicas culturais (para adensar o pensamento acerca do tema desta edição do Letras, “origens e identidade”):

“Histórias Afro-atlânticas” (foto), exposição em cartaz no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, vale a viagem. A curadoria é de Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito,Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo. Eis uma temática que precisa ser vista e revista todos os dias.

“AI-5 – 50 ANOS – Ainda não acabou de terminar“,  é outra exposição belíssima, em cartaz também no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Tem curadoria do Paulo Miyada. Não espere sutilezas e, se possível, visite antes das eleições.

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