Por Lyslei Nascimento e Mariângela Paraizo
Editoria Lyslei Nascimento
A publicação de Os mesmos e os outros: o livro dos ex, publicado em 2017, O foco das coisas & outras histórias e A memória do perigo, de 2019, de Ana Cecília Carvalho, expõe, de forma contundente, uma “Trilogia dos inquietos”. A inquietude desses textos pode ser entrevista nos abalos, pequenos e grandes, de seres, de palavras, de imagens, de amores e de sentimentos que não têm sossego dentro do peito. Desse modo, o leitor deverá saber, de antemão, que, percorrer essas páginas é estar, permanentemente, em perigo em face dos desvãos da linguagem, das verdades subterrâneas, das mentiras e dos logros que deslizam por entre as linhas em forma de narrativa.
Os mesmos e os outros: o livro dos ex reúne uma série de narrativas curtas que tratam de, entre outras coisas dolorosas, relacionamentos malogrados. A maioria dessas histórias é contada por protagonistas que ostentam seu fracasso à flor da pele, tentando suturar com palavras o corpo magoado
Uma construção inusitada vai superpondo esses relatos pela repetição dos traços, fatos ou nomes que reencontramos no andamento da leitura, marca d’água que, pouco a pouco entrelaça as narrativas. Dolorosamente, parece que as diferentes personagens contam sempre a mesma história, não importando o início, as peripécias ou o desfecho: sempre se repete a falência das relações e a culpa é sempre do outro.
No início do livro e antes de cada conto, há uma profusão de epígrafes, colhidas em bibliografia erudita ou em canções populares – de Sêneca ou Borges a Ivan Lins ou Djavan – que certamente tocarão a memória do leitor. Elas cumprirão o papel de aguçar o incômodo que nos atinge desde o início, fazendo parte do clima. Há, por exemplo, a chuva constante que aparece em duas das primeiras epígrafes, de Fernando Pessoa e de Gabriel García Marques, que vai se tornando chuva ácida, recriando o clima do filme Blade Runner.
À medida que a leitura prossegue, o incômodo vai adensando uma inquietante estranheza, como o trecho de Júlio Cortázar retirado do conto “Casa tomada” e inscrito, por Ana Cecília Carvalho, em “A ex-casa”. Essa referência contamina as ações do narrador que está encarregado de fechar para sempre a casa da família, por ocasião da morte do pai, e que, na saída, é surpreendido por seu ex-cão, Fidel, representante de suas apostas e traições, tão caras quanto corriqueiras. Presidindo “O prisioneiro” estão os versos de “O enterrado vivo”, de Carlos Drummond de Andrade: “Sempre dentro de mim meu inimigo./ E sempre no meu sempre a mesma ausência”, Contagiada, a memória do leitor pode chamar este outro verso daquele poema: “Sempre, no mesmo engano, outro retrato”, e construir sua própria chave de leitura.
Há nesse livro, pequenos trechos imiscuídos no enredo dos contos nos quais se repetem algumas informações que vão delimitando uma arena comum às narrativas, em uma atmosfera densa, sombria e confusa, como em uma fotografia om exposições superpostas. Trata-se de um cenário destruído, que, aos poucos, revela a hostilidade que toda cidade esconde, na transparência e no reflexo de suas vitrines, janelas e cortinas, na impossível convivência entre as vidas drenadas por becos e avenidas.
O primeiro personagem do livro aparece no final de um corredor, da perspectiva da antiga parceira que o descreve, e essa imagem também pode ser tomada como emblemática, já que em todos os contos encontraremos alguém tentando emergir no doloroso final de um relacionamento e, no entanto, reforçando argumentos para respaldar a violência recíproca a cada rompimento, proporcional à atração que unira cada par. Simetricamente, na última frase do livro, outra narradora fala de alguém que ela deixará afogada no fundo de uma garrafa. Há, nas tramas, diversos tipos de casais hetero ou homoafetivos, menos ou mais novos.
As personagens se apresentam, constantemente, na tensão de uma trégua entre os Mesmos e os Outros, facções que vão espalhando ruínas pela cidade identificada como o Rio de Janeiro. Mudam de nome, mudam de lado, mudam de língua, chegam a encontrar outros parceiros e comparsas, mas sua escolha insiste em reavivar as próprias cicatrizes. E aí, se o leitor esteve até aqui tomando as dores das personagens ou revivendo suas próprias feridas, pode aceitar a proposta e se descolar um pouco do enunciado, perceber como as pequenas e progressivas mudanças na enunciação vão revelando que a repetição não está no enredo, mas na maneira de contá-lo e, principalmente, de contabilizá-lo. Pulo de gato, essa intervenção de uma escuta propõe um ligeiro desvio de curso. Sutil, mas suficiente para incitar a uma escolha.
Esse livro brilhantemente desconfortável, encontra-se já em sua segunda edição. Longe de ecoar uma literatura de fácil assimilação, é um livro que impõe uma releitura de nossas concepções éticas e estéticas. Exige de nós um sobressalto, uma ligeira oscilação que nos expõe ao que diferencia uma obra literária: nas vias abertas de suas entrelinhas, sempre caberá ao leitor aumentar, cortar ou catar os pontos, conforme seu engenho e sua fantasia.
O segundo livro da trilogia, O foco das coisas & outras histórias, não é menos intenso em suas subterrâneas ou explícitas agitações. Nem é, certamente, um livro de transparências, mas de nuances e de sombras. Imagens e metáforas de confinamento – o quarto do bebê, o berço, a casa, o elevador, a escola, o casamento, a família, o ônibus, ou a câmera fotográfica– traduzem, com inteligência e bom humor, a vida, mesmo quando se está diante de um tratado poético sobre a desesperança.
Conciso, como aqueles martelos que batem nas cabeças de pequenos pregos, ou na ponta dos dedos, este livro provoca uma suspensão, várias suspensões, no ritmo da leitura, na respiração, nos sentidos. O espaço entre os textos oxigena, minimamente, a leitura. O leitor vê-se num labirinto de vários níveis, com a sensação estar preso, tal qual um mergulhador de águas profundas com escafandro com o mínimo de ar respirável. Ou, ainda, como alguém perdido em um deserto amaldiçoado por capturar um gato. O leitor, nesse universo de letras, deverá abrir mão da rede que lhe confere a imaginária segurança de ver sentido em tudo.
Equilibrar-se no no estreito das certezas é condição para se aproximar desses textos estranhamente belos e, por que não dizer, belamente estranhos. Como na célebre lição de Graciliano Ramos, “liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe, e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”. Nos lugares inóspitos de cada história de O foco das coisas, uma fresta de ar nos ajuda a respirar.
O terceiro volume da “Trilogia dos inquietos”, A memória do perigo, não destoa dos livros que o antecedem. Ao optar por uma narrativa em primeira pessoa, sequencial, em forma de romance ou de novela, a autora põe em cena um narrador que não merece confiança, mergulhado que está em suas dúvidas, supostos sofrimentos e imaginárias alucinações. Tudo bem tramado, na ficção, a sensação de perigo que espreita o personagem faz com que o leitor duvide dos perigos reais e imediatos descritos no texto. As mulheres, assim, incógnitas indevassáveis, em toda a trama, Natália, Anelise/Denise e Bianchi, são como fantasmas, desassociadas de uma possível comprovação de existência, ou desdobramentos do próprio narrador. Elas encampam situações e narrativas de acontecimentos a que o leitor só tem acesso por meias-verdades, mentiras ou falsificações de relatos. Com parcas e duvidosas informações, cabe ao leitor tatear, como quem não vê bem, as páginas que bruxuleiam e produzem outras sombras.
Estranhamente femininas, essas personagens dão o tom dessa narrativa que parece fechar um ciclo. Instáveis, essas mulheres de papel, não se constituem como peças únicas, ao contrário, desdobram-se em, pelo menos, duas, cada uma. Esses seres, bifrontes ou multifacetários, que podem ser entrevistos, por exemplo, nos nomes de Anelise ou Denise traduzem esse duplo, essa condição falseada da verdade ficcional que ali se inscreve. Também as inscreve numa espécie de bestiário de seres imaginários, como queria Jorge Luis Borges. As mulheres, na memória do protagonista, são um perigo, não porque ameaçam a integridade física dele, propriamente dita, mas sua ilusória sanidade. Por isso, outro aspecto que dessa a o leitor é a concretude mesma das palavras. Ao adquirirem substância, os vocábulos vivem, morrem, quebram. As palavras fazem os personagens engasgar-se e podem ser presas por alfinetes, lembrando as célebres coleções de borboletas. Nessas condições, o texto prende e está preso. Fura e perfura, paradoxalmente, os sentidos, fazendo-os, como as asas das borboletas refletirem luz e sombra. Anoitece.
Referências
CARVALHO, Ana Cecilia. Os mesmos e os outros: o livro dos ex. Belo Horizonte: Quixote+Do Edito-ras Associadas, 2017. 191p.
CARVALHO, Ana Cecília. O foco das coisas & ou-tras histórias. Belo Horizonte: Quixote+Do Edito-ras Associadas, 2019. 116p.
CARVALHO, Ana Cecília. A memória do perigo. Belo Horizonte: Quixote Do Editoras Associa-das, 2019. 90p.
Lyslei Nascimento e Mariângela Paraizo são professoras de Literatura na Faculdade de Letras da UFMG