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Entre tramas e labirintos

A editora de Fotografia do Letras Daniela Paoliello destaca o projeto fotográfico “Entre Tramas e Labirintos”, da artista visual e fotógrafa Raquel Gandra, premiado pelo XVI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia – com foco na valorização de patrimônios artísticos e culturais regionais e relação com o meio ambiente e o turismo sustentável do país.

Editoria Daniela Paoliello

“Entre Tramas e Labirintos” não se trata de uma série fotográfica documental tradicional. A informação não é evidente. Somos convidados a um exercício interpretativo, a desvendar as imagens.

Há um chamado para o olhar. Raquel nos deixa algumas pistas que indicam onde se dá a narrativa: a areia vermelha, alaranjada no fundo da água; a imagem de um veleiro; o azul translúcido do mar; corais e rastros de falésia. Cada imagem nos revela sutilmente mais pistas desse enigma: no barco lemos “Aracati” – município onde se localiza a vila; na camisa turística do pescador confirmamos o local: Canoa Quebrada.

As fotografias nos trazem, para além da construção da paisagem, outros elementos. Observamos a fixação de traços da tradicionalidade local que se revelam não só por sua materialidade, presença concreta, mas  também pelos acontecimentos e seus rastros: o peixe recém pescado e já em processo de preparação; o ato de bordar; o bordado labirinto que se projeta sobre a pele da mulher retratada; a coleta de siris para servir de isca; os preparativos que antecedem o nascer do sol para a atividade pesqueira.

Se buscarmos “Canoa Quebrada” na pesquisa do Google, encontramos centenas de fotografias  associadas a espaços construídos pela indústria turística. Vemos imagens da praia com barracas de sol, grandes hotéis, turistas em bugres e veleiros. Em “Entre Tramas e Labirintos” as imagens revelam uma outra visualidade desse lugar,  e são construídas a partir de operações que se distinguem radicalmente daquele que opera pela captura e domesticação da imagem. Em conversa com a artista, ela relata um pouco de seu processo:

Todos os dias, por volta das 6 ou 7 da manhã, eu passava pra ver os pescadores antes de saírem e dizia “Hoje vamos pescar um camurupim?” e eles respondiam “Claro!”. Depois eu voltava pra praia por volta de meio dia pra ver o que eles tinham trazido. E todos os dias, por duas semanas, nada de camurupim… Até que um dia, sábado, mais precisamente, quando recebo uma ligação de um dos pescadores, que mora em frente ao ponto de chegada das jangadas dizendo “Rapazinho chegou com o Camurupim! Vem Raquel! Vem logo!” Eu saí correndo desesperada, fotografei bastante com minhas câmeras analógicas e acabei conseguindo fazer as imagens que eu queria. Achei muito bonito e muito simbólico porque só consegui realizar essas imagens porque todo mundo sabia que elas eram importantes pra mim e eles se mobilizaram pra isso.1

Aberta ao erro e ao acaso, oscilando entre observar e intervir, a série fotográfica vai se constituindo nos 30 dias de estadia de Raquel na vila. Em meio ao cheiro de mar, ela espera atenta, envolta da densidade do ar quente e úmido, que o acontecimento se presentifique para – não capturá-lo – mas recebê-lo na superfície do filme/sensor das câmeras que utiliza.  Em outros dias, seguindo a vocação da fotografia contemporânea, Raquel constrói algumas cenas conjuntamente com os moradores da vila, intencionando alcançar uma representação mais subjetiva e lúdica de uma história ou fenômeno.2

Para a produção técnica das imagens ela revela o uso de três câmeras distintas – uma Sony A7RII, uma Nikon FM2 (35mm) e uma Start (médio formato). Ao final, Raquel retorna com 21 rolos de película e centenas de fotos digitais, para então selecionar um conjunto específico de imagens para compor essa narrativa pautada por uma mescla entre imagens documentais e outras “algo encenadas”.3 Em nossa conversa ela conta um pouco mais:

Eu sabia que iria misturar fotografia analógica e digital, filme PB e filme colorido, filme vencido e filme recente, 35mm e médio formato. Eu trabalho muito frequentemente com o analógico não só por afinidade com a experiência que me traz, mas também por saber que em muitos momentos essa relação pode me surpreender. O fato de usar filme vencido ou câmeras com lentes mais embaçadas, ou fazer duplas exposições na própria câmera, por exemplo, servem como um convite ao acaso.4

Raquel afirma também que a decisão de trabalhar com vários formatos se deu pelo desejo de produzir uma atmosfera onírica e “esgarçar as fronteiras entre documental e ficcional… e também de trazer pro aspecto técnico essa minha defesa de que pode haver harmonia entre saberes do passado e saberes do presente/futuro.”

Esses 30 dias, nos quais Raquel coletou conversas e realizou suas imagens, são também resultado de um acúmulo de encontros. Essa foi sua quinta temporada em Canoa Quebrada em 10 anos, ao longo dos quais vem construindo uma relação de afeto e respeito com a cidade e seus moradores. O ensaio fotográfico é tecido em um tempo estendido, com a  paciência das mãos que bordam pela tradicional técnica de labirinto, e que tecem narrativas sem atropelar o tempo de cada processo. Buscando a saída de um labirinto imagético, enigma imposto pela latência de uma imagem que solicita sua revelação ao mundo.

A Vovó Aracy ficava sentada à beira da luz do dia bordando. Nessa época ainda tinham várias mulheres que ficavam nas suas varandas ou em cadeiras em frente de casa bordando lá. Descobri que aquele bordado se chamava labirinto e que ele demandava muitas etapas para ser terminado. Enquanto Aracy bordava, a gente conversava e ela ia me contando as histórias de Canoa Quebrada e dela mesma quando pequena. Me contou das brincadeiras na praia, de carregar lata d’água na cabeça e das histórias de assombração. Falava com tantas minúcias que dava até pra ver as cenas na cabeça. Fui conquistada por essas histórias, pela passagem de tempo lenta das cadeiras nas guaritas em fim de tarde, pela alegria contagiante, e, sobretudo, pelo acolhimento e generosidade de seus habitantes.5

Assim como para Edouard Glissant, teórico Martinicano, Raquel deixa claro em suas fotos e relatos que a poética não é uma arte do sonho ou da ilusão, mas uma maneira (…) de conceber a relação entre si-mesmo e o outro e a expressar.6

Notas

1 a 5. Trecho retirado de entrevista realizada com a artista Raquel Gandra

6. GLISSANT, Edouard. A Poética da Relação. Edições Sextante, 2011. [pré-publicação na internet] Disponível em: https://www.buala.org/pt/mukanda/a-poetica-da-relacao-pre-publicacao-de-edouard-glissant. Acesso em 20 set. 2019

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