Editoria Bruno Campos
A construção do Palácio de Cristal em maio de 1851, em Londres, pode ser considerada o marco do nascimento da arquitetura moderna. Naquele mesmo ano, aqui no Brasil, D. Pedro II ainda era o nosso imperador e a Lei Eusébio de Queirós, que extinguia o tráfico de escravos africanos, havia sido sancionada apenas recentemente. A população de São Paulo não passava de 25.000 míseras almas e o território de Belo Horizonte era ainda um curral inóspito, quando uma das mais espetaculares construções de todos os tempos foi erguida de forma quase mágica no Hyde Park. É importante contextualizar o feito devidamente no tempo histórico, pois o projeto e a execução de 170 anos atrás foi algo tão extraordinário e único que sua breve existência chega a ser miraculosa.
A história é conhecida, mas merece ser relembrada. Tudo começou com um funcionário público, dublê de inventor e entusiasta do design industrial chamado Henry Cole, com o apoio do príncipe Albert. Em 1849 os dois se entusiasmaram com a idéia de fazer uma exposição de produtos industriais nos moldes das que aconteciam em Paris, só que muito mais abrangente e com participantes internacionais. A intenção era organizar uma “Grande Exposição Universal” que fosse uma plataforma na qual países de todo o mundo pudessem exibir suas realizações, mas onde ficasse clara, naturalmente, a superioridade da própria Grã-Bretanha.
Um cronograma extremamente ambicioso estabelecia apenas 15 meses para projetar e construir o maior edifício de todos os tempos, e também organizar toda a logística do evento com dezenas milhares de estandes vindos de toda parte do mundo. O Comitê encarregado de montar a “Grande Exposição” tratou logo de organizar um concurso público para o projeto, que deveria obedecer a várias especificações básicas: o prédio tinha que ser “temporário, simples e o mais barato possível de construir” no curto tempo que restava antes da abertura da Exposição, agendada para 1 de maio de 1851. Em 3 semanas o Comitê recebeu 245 projetos de 38 países. Nenhum projeto ganhou o concurso, todos foram rejeitados como inviáveis ou inadequados.
Desesperado, o Comitê resolveu ele mesmo conceber uma proposta. E como não poderia deixar de ser, o resultado foi um absoluto desastre: “o camelo é um cavalo desenhado por um Comitê”, diz o provérbio. A ineficácia da tomada de decisão por um grupo grande de pessoas, incorporando muitas opiniões conflitantes em um único projeto por meio de várias negociações e acordos, ficou evidente no monstrengo gerado em conjunto. Mas não vamos perder tempo ou espaço com o desastre coletivo. Nesse momento entra em cena o gênio individual para salvar a reputação periclitante da poderosa coroa britânica. E esse humilde salvador, que mais tarde virou mais do que merecidamente “Sir”, não era nem mesmo arquiteto ou engenheiro formado.
Joseph Paxton era um fenômeno inigualável. Nascido em 1803 em Berdfordshire, sétimo filho de uma família de fazendeiros pobres, começou a trabalhar bem cedo como jardineiro (aos 14 anos) e logo se destacou de tal forma que aos 20 ele já tinha se tornado o Jardineiro-Chefe de Chatsworth, considerado um dos melhores jardins paisagísticos da época, a convite do famoso Duque de Devonshire. Segundo Bill Bryson (At home: a short history of private life), essa foi “a iniciativa mais sábia jamais tomada por um aristocrata”. Entre outras proezas, em um período curtíssimo de tempo, Paxton projetou e instalou a famosa “Emperor’s Fountain”, lançando jatos de água até oitenta metros de altura (uma façanha da engenharia até hoje), construiu o maior jardim ornamental do mundo, projetou uma cidade inteira, se tornou o maior especialista do mundo em dálias e ao mesmo tempo em transplante de árvores maduras (acima de 8 toneladas), ganhou vários prêmios por produzir os melhores melões, figos e nectarinas do país, criou uma revista de jardinagem que teve simplesmente Charles Dickens como editor, escreveu diversos livros sobre jardinagem, criou o primeiro parque municipal do mundo (que se tornou o modelo de Frederick Law Olmsted para construir o Central Park em NY) e ainda por cima ficou rico investindo em ações de empresas ferroviárias (ao ponto de virar conselheiro de várias delas). Mas, sobretudo, começou a se interessar obsessivamente em desenvolver enormes estruturas para abrigar estufas.
Em 1846 Paxton construiu um grande edifício em ferro fundido, madeira laminada e vidro em Chatsworth para abrigar as primeiras sementes de uma exótica planta que haviam sido enviadas para Kew Gardens da Amazônia, Brasil. O desenho da “Victoria Regia House” foi de fato inspirado pela estrutura orgânica das enormes folhas da planta, “um feito natural de engenharia”, segundo Paxton, que testou a resistência da planta colocando sua própria filha Annie literalmente flutuando em cima de uma folha. O segredo da planta para suportar uma pessoa de até 40 quilos está na rigidez proporcionada pelas nervuras radiais que se conectam com as nervuras transversais flexíveis na parte inferior da folha. A experimentação constante ao longo de vários anos levou Paxton ao desenvolvimento de coberturas de estufas com estruturas extremamente leves e econômicas. Há uma famosa foto de Paxton, radiante, segurando uma enorme vitória régia de mais de 2m de diâmetro, que ilustra bem tudo isso.
Dessa forma, quando ele ficou sabendo do “desastre” do concurso público para o projeto de um grandioso salão para a Grande Exposição Universal, Paxton desenvolveu sua solução em 2 semanas e resolveu submeter ao Comitê de qualquer forma (com apoio entusiasmado de Henry Cole). Seu projeto infringia todas as regras da concorrência pública: estava fora do prazo, continha materiais inovadores, estritamente proibidos pelo termo de referência e, para adicionar insulto à injúria, ele não era nem mesmo arquiteto ou engenheiro, ora bolas. O Comitê se opôs fortemente, como era de se esperar, ainda mais que um outro projeto já estava em estágio avançado de desenvolvimento. Mas Paxton estava tão convencido da viabilidade de seu estudo que decidiu simplesmente passar por cima do Comitê e publicar o seu projeto no Illustrated London News, para aclamação universal e irrestrita. O Palácio de Cristal de Paxton não necessitava de tijolo algum (muito menos dos 30 milhões de tijolos do concorrente), nem de cimento, argamassa ou mesmo fundação. Era uma construção extremamente leve e efêmera, para ser montada, com suas peças aparafusadas e simplesmente pousada no solo como uma tenda gigantesca.
No outono de 1850, no Hyde Park, surgiu então um edifício absolutamente extraordinário: uma enorme estrutura de ferro e vidro, totalmente transparente e com um vasto espaço interior onde caberiam quatro catedrais de Saint Paul. Durante sua breve existência ele foi o maior edifício do mundo, e também o mais magnífico e surpreendente. O Palácio de Cristal era uma gigantesca estrutura até mesmo para os padrões de hoje: 5 quarteirões de comprimento por um quarteirão de largura, com a altura média de um prédio de 10 andares. Seu volume, leve e resplandecente, surgiu quase que de uma hora para outra no Hyde Park (5 meses), cobrindo mais de 70.000m2 de terreno, preservando inclusive uma alameda de olmos.
Mas apesar de toda a magnitude e imponência, era um edifício totalmente modular, pré-fabricado a partir de peças padronizadas: uma treliça de ferro fundido com 7m de comprimento por 90cm de altura, que podia ser montada com outras treliças correspondentes “ad infinitum”, formando uma armação na qual se encaixavam os 300.000 painéis de vidro de 1,20m x 25cm (mais de 1/3 de todo o vidro produzido na Inglaterra naquele ano), formando um edifício sem precedentes, com 564m de comprimento (1851 pés, em comemoração ao ano – 150 anos antes de Daniel Libeskind ter essa idéia) por 124m de largura e quase 33m de altura ao longo da abóbada do seu eixo principal.
Além da concepção geral do projeto, a execução foi igualmente genial e impecável em todos seus detalhes. Tal qual um Brunelleschi moderno, Paxton projetou uma plataforma móvel especial que se movia ao longo dos suportes do teto, permitindo que os operários instalassem 1.800 painéis de vidro por semana, uma produtividade que é até hoje um assombro de eficiência. Para instalar a incrível quantidade de 30 km lineares de calhas da cobertura, Paxton projetou também uma máquina que era capaz de instalar 600m de calha por dia, operada por uma pequena equipe, coisa que normalmente exigiria um dia de trabalho de 300 homens. O projeto era superlativo, em todos os sentidos. E, no entanto, foi construído dentro do prazo e do orçamento. Graças ao gênio criativo e a capacidade de execução de Paxton, o custo final de tal maravilha inovadora foi extremamente modesto: apenas 80.000 libras (ao câmbio de hoje, 64 milhões de libras, ou seja, 915 libras por m2). A “Grande Exposição” teve ainda um lucro de 186.000 libras (149 milhões de libras no câmbio de hoje), suficiente para comprar 12 hectares ao sul do Hyde Park, onde foram construídos depois o Royal Albert Hall, o Victoria & Albert Museum, o Museu de História Natural, o Royal College of Art, o Royal College of Music etc.
Mas se a construção em si já era assombrosa, as maravilhas no seu interior não deixavam a desejar. Havia quase 100 mil objetos expostos em 14 mil estandes, para uma média de um milhão de visitantes por mês. Pela primeira vez na história, 100.000 pessoas de todas as classes sociais se encontravam ao mesmo tempo em um local coberto, sem nenhum incidente. Pessoas famosas da época, como Charles Darwin, Karl Marx, Michael Faraday (que ajudou no planejamento e julgamento das exposições), os escritores Charles Dickens, Lewis Carroll, Charlotte Brontë e membros da família real se misturavam com a plebe, todos igualmente deslumbrados com o feito de Joseph Paxton.
No dia 1 de maio de 1851 a “Grande Exposição” foi aberta pela radiante rainha Vitória, que chamou a inauguração de “o dia mais grandioso da nossa história”:
“Este é um dos maiores e mais gloriosos dias de nossas vidas … É um dia que faz meu coração inchar de gratidão … O Parque apresentou um espetáculo maravilhoso, com multidões atravessando por ele, – carruagens e tropas passando … The Green Park e Hyde Park se tornaram uma massa de seres humanos densamente apinhados, no mais alto bom humor … antes de nos aproximarmos do Palácio de Cristal, o sol brilhou e cintilou sobre o edifício gigantesco, sobre o qual as bandeiras de todas as nações tremulavam … A visão quando chegamos ao centro onde ficavam os degraus e o trono (no qual não me sentei), de frente para a bela fonte de cristal, foi mágico e impressionante. A tremenda celebração, a alegria expressa em cada rosto, a vastidão do edifício, com toda a sua decoração e exibições , o som do órgão … tudo isso foi realmente comovente “
Vitória Régia, 1851
P.S: O poderoso Palácio de Cristal foi desmontado no verão de 1852 e relocado para outro lugar, onde foi consumido por um incêndio em 1936
Bruno Campos (1970) é arquiteto formado pela UFMG (1994), com mestrado em Housing and Urbanism na Architectural Association, Londres (1998). Trabalhou em Nova York com Weiss/Manfredi Architects e desde 2001 vem desenvolvendo na BCMF Arquitetos, com os sócios Marcelo Fontes e Silvio Todeschi, projetos de várias escalas e tipologias, especialmente projetos de grande porte e complexidade.