Editoria Marcelo Ramos
A ideia do vazio permeia o ambiente musical desde sua concepção, pois uma das primeiras informações que recebemos ao estudar música é a existência tanto do som quanto do silêncio, que são as pausas, tão importantes para o discurso musical. Assim como na linguagem falada, as pausas servem para dar espaço a outras ideias vindas de outros instrumentos, ou simplesmente para dar um descanso ao ouvinte. O fato de algumas pessoas se incomodarem com certos músicos do jazz ao improvisarem é justamente a falta de equilíbrio entre esses dois elementos; poucos suportam a emissão de mil notas por segundo durante cinco minutos sem uma única pausa, uma vez que isso dificulta a compreensão do dito discurso musical.
O vazio e o silêncio no meio musical vieram de formas diferentes para alguns compositores. Beethoven, como é fato conhecido por todos, ficou completamente surdo no auge de sua carreira, e na estréia de sua famosa Sinfonia No. 9 (Ode à Alegria) não foi capaz de escutar uma nota sequer, enquanto observava a multidão aplaudindo em êxtase no teatro lotado. Como é possível compor dessa maneira? Bem, em música existe um processo que chamamos de “ouvido interno” e os americanos chamam de ‘audiation’, ou seja, a habilidade de ouvir internamente o que é escrito numa pauta musical. O processo se assemelha a uma pessoa muda que escreve um livro, por exemplo; embora ela não seja capaz de pronunciar o livro em voz alta, ela o lê internamente e transmite a mensagem da mesma forma, ao criar o texto e deixá-lo disponível.
Outro compositor, John Cage (1912-1992), utilizou o silêncio de uma forma bastante peculiar: compôs uma obra intitulada 4’33, onde o músico ou o grupo musical se preparam para tocar com todas as pompas tradicionais (roupa, aplausos ao entrar, iluminação, etc) e ficam quatro minutos e trinta e três segundos em completo silêncio. Isso gera reações as mais diversas possíveis do público e do ambiente, desde ataques de riso, tosses crônicas, celulares tocando (fenômeno atual, pois quando foi composta não existiam), barulhos de ar condicionado, do trânsito fora do teatro, de pessoas na coxia, enfim, uma soma de sons advindos dessa interação forçada entre palco e plateia. O objetivo da obra é justamente criar esse ambiente e deixá-lo exposto ao público, que aprecia a paisagem sonora existente, observando sonoridades que habitam o espaço e que não eram percebidas anteriormente.
Na pandemia tivemos (temos?) uma ameaça real de silenciamento das atividades de música erudita, e mesmo da música popular, pois são atividades presenciais e geram aglomeração. Algumas orquestras fora do Brasil realmente fecharam ou foram fundidas com outras da mesma cidade, enquanto outros grupos se reinventaram, investindo em transmissões via internet. No Brasil não se teve notícia de extinção de nenhuma orquestra, mas várias tiveram redução temporária de salários, o que afetou muito vários músicos brasileiros. Na música popular houve um ‘boom’ de lives e shows gravados, e infelizmente muitos músicos foram afetados pela escassez de shows ao vivo, e aulas particulares foram canceladas enquanto escolas privadas de música tiveram que fechar suas portas. Ainda assim, talvez a música foi o segmento que melhor se adaptou a essa realidade, haja visto que o formato já era conhecido da maioria das orquestras profissionais, e houve apenas um direcionamento de forças no sentido de explorar mais suas possibilidades, gerando conteúdo novo e interativo, promovendo assinaturas especiais e programas mais leves, para atender a esse momento excepcional. Mas nada disso enfrentou o problema que não era conhecido até então – o vazio das platéias e das cadeiras! Os músicos, acostumados a plateias lotadas, aplausos calorosos, urros de ‘bravo’ e ‘bis’, tiveram que se contentar com um velho e conhecido parceiro – o silêncio, e aceitar essa frustração, que passou a ser sua companheira em todos os eventos. A pandemia ainda deu voz a outros silêncios, que vou apenas citar, de investimentos dos governos na área cultural, de oportunidades a todos os artistas e técnicos, de forçar encaminhamentos de vida que não ocorreriam se houvesse um pouco mais de cuidado com a arte e a cultura.
O vazio hoje se manifesta de uma forma muito cruel para os estudantes de música e das artes em geral (ou seria de todas as áreas?) – o silenciamento das oportunidades. Independente de pandemia, a falta de perspectiva de obter um emprego após o curso superior afeta muitos estudantes, fato percebido por mim mesmo enquanto professor da UFMG. Muitos alunos acabam aceitando sub-ofertas de emprego em lojas, na iniciativa privada e pequenos escritórios para atuarem como vendedores, auxiliares de todo tipo, entregadores, motoristas de aplicativo, dentre outros. Precisamos clamar e propor ações de incentivo a toda essa gente, seja abrindo novas frentes de trabalho ou mesmo estágios (como orquestras e ballets jovens, academias com bolsas para alunos já formados, etc), seja criando novos nichos no novo ambiente digital em que vivemos, com treinamento para canais de youtube, técnicas para vender no Spotify, cursos de produção, dentre outras. Se nossa vida é uma música, e se neste momento estamos numa grande pausa/silêncio necessários para absorvermos o que ouvimos do lado de lá, há a esperança de que algo melhore e de que nossa melodia volte a tocar, dessa vez para plateias lotadas de gente vacinada! Que venha o pós-pandemia.
Marcelo Ramos é maestro e professor no Depto. de Música da UFMG