Por Carla Maia
Há quem diga que a Retomada do Cinema Brasileiro foi liderada por mãos femininas, provavelmente entusiasmados com o sucesso de Carlota Joaquina, princesa do Brasil (1995) ou com a boa recepção crítica de Terra estrangeira (1995), co-dirigido por Daniela Thomas em parceria com Walter Salles. Parece precipitado semelhante afirmação, considerando-se que, do escasso conjunto de 14 filmes lançados comercialmente em 1995, apenas três foram dirigidos por mulheres (o terceiro, ainda não mencionado, foi o documentário Carmem Miranda – Banana is my businness, de Helena Solberg), o que representa cerca de 20% da produção. Ano após ano, a quantidade de filmes lançados em circuito comercial cresceu consideravelmente – só em 2013 foram 129, dez vezes mais que em 1995 – mas a proporção foi mantida: dos 129 lançamentos de 2013, vinte e três foram dirigidos por mulheres, sendo dois em co-direção, e do total de 1009 filmes lançados entre 1995 e 2013, duzentos tem assinatura feminina, ou seja, aproximadamente 20%, um caso em cada cinco. É pouco e, se cruzada com outros fatores, como orçamento e bilheteria, a estatística apenas reforça o truísmo: o cinema (no Brasil e no mundo) é território privilegiado dos homens e as mulheres são (no cinema como na vida) uma minoria.
Deleuze e Guattari escrevem em seus Mil Platôs: “no Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão” e “as mulheres, independentemente de seu número, são uma minoria”. Entretanto, no pensamento dos autores, a condição minoritária surge menos atrelada a um desfavorecimento do que como condição para a resistência e a criação. Em Kafka – por uma literatura menor, os mesmos autores referem-se a um tornar-se menor – dentro de uma língua maior, fazer um uso menor, estar em sua própria língua como estrangeiro. Ao analisar a escritura de Kafka, Deleuze e Guattari destacam o modo original como o escritor tcheco soube escrever como nômade, imigrado, cigano de sua própria língua. Tal atitude exige deslocamentos, rupturas, uma certa maneira de fazer a língua vacilar em suas estruturas dominantes, numa busca das intensidades menos que das representações, de modo a fazer que a linguagem tenda para seus extremos, para seus limites. Trata-se de buscar, escrevem os autores, “seu próprio patuá, seu próprio deserto”.
Marguerite Duras também se refere ao espaço desértico ao escrever sobre “essa linha reta da vida de todas as mulheres, esse silêncio da história das mulheres. Esse fracasso que levaria a pensar no sucesso, esse sucesso que não existe, que é um deserto”. A escritora e cineasta afirma gritar “na direção dos desertos” e considera que “somos todas instruídas em dor”:
Porque penso que somos todas, e não todos. A dor, nos homens, até hoje, através do tempo, da História, sempre encontrou seu exutório, sua solução. Transfigurou-se em cólera, em fatos exteriores, como a guerra, os crimes, a expulsão das mulheres, nos países muçulmanos, na China, o sepultamento das mulheres adúlteras com seus amantes, vivas, vivos, ou sua desfiguração.(…) Quanto a nós, jamais tivemos outro recurso além do mutismo. Até as mulheres que se dizem liberadas devido a sua profissão. Não se pode comparar a experiência da dor da mulher com a do homem.
A dor da mulher pode ser ambígua, como num parto, paradoxalmente dolorosa e desejada, sofrida e libertadora. Pode ser física, efeito da violência que atinge tantas mulheres, ainda hoje. Pode ser psicológica, resultante da violência simbólica do machismo operante em nossa sociedade, disseminada nas ruas, nos bares, nos prostíbulos, nos salões de beleza, nas novelas, nos filmes, na mesa de jantar. Pode ser, e é, sofrida também por homens. Seja como for, ela permanece, se lermos com Duras, incomparável.
A incomparabilidade sugerida por Duras pode ser a via manifesta do desejo de não submeter a experiência feminina ao padrão fornecido pela experiência masculina, numa defesa do que é múltiplo, do que se afirma, vez após vez, como singularmente diferente. Afinal, comparar os dois sexos – “é que o homem tem cabelo no peito, tem o queixo cabeludo e a mulher não tem”, canta o baião – é determinar para cada um deles um lugar fixo, delimitado. No caso do pensamento de gênero, o pensamento binário que opõe homem e mulher fala da segunda apenas a partir do primeiro. A mulher torna-se a exceção que confirma a regra, como uma costela de Adão. Ocupando o lugar da diferença, ela só reafirma o lugar de exceção à norma, que permanece masculina.
É comum ouvir das diretoras em atividade no Brasil a declaração de que ser mulher não altera o modo como fazem cinema, que isso não é uma questão para elas. O dado que muitas vezes passa despercebido é que elas são, quase todas, brancas e de boa posição social. Dirigir cinema no Brasil é um privilégio para poucos (e poucas). Numa sociedade não apenas patriarcal como extremamente desigual, social e economicamente, refletir sobre os cruzamentos do gênero com outros eixos de diferença é fundamental. Propor que questões de gênero, classe ou raça sejam minimizadas, superadas ou desconsideradas é revelar, sobretudo, o lugar do qual se fala, necessariamente privilegiado em relação aos “diferentes”. É preciso tomar direção oposta, em defesa de um cinema tanto mais relevante e necessário quanto mais atento estiver às múltiplas manifestações da alteridade. Escapar ao binarismo rumo à uma valorização da multiplicidade incomparável dos seres – eis a difícil tarefa que devemos colocar ao cinema do nosso tempo.
Carla Maia é Doutora em Comunicação Social pela FAFICH/UFMG. Professora do Instituto de Comunicação e Artes do Centro Universitário UNA.
Referências
1. DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia.Vol.2. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2005, p. 44.
2. DELEUZE; GUATTARI. Kafka Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 29.
3. DURAS. Os olhos verdes. Rio de Janeiro: Globo, 1988, p. 171.
4. DURAS. Os olhos verdes, p. 168-169.