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Soluções e Placebos: Uma relação entre o conceito de dispositivo e o Placebo Project, de Dunne and Raby.

Por Ricardo Portilho

Pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte de sombra, a sua íntima obscuridade. Com isso, todavia, ainda não respondemos a nossa pergunta. porque conseguir perceber as trevas que provêm da época deveria nos interessar? Não é talvez o escuro uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está direcionado para nós, e não pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contrário, o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cansa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. (AGAMBEN, 2009: 64)

Uma suposta pesquisa genérica, perguntando a transeuntes ou a clientes em um balcão de padaria sobre os significados associados à palavra design, invarialmente vai encontrar associações com “beleza”, “funcionalidade”, “inovação” e “modernidade”. Se um produto tem design, provavelmente vai ser mais bonito, mais moderno, e mais caro.
Vamos dispensar esse pesquisa imaginária e recorrer a uma pesquisa empírica. Uma rápida busca no google pela frase “o que é design” retorna, em primeiro lugar, que nos oferece em seu primeiro parágrafo a seguinte definição:

Entende-se por design a melhoria dos aspectos funcionais, ergonômicos e visuais do produto, de modo a atender às necessidades do consumidor, melhorando o conforto, a segurança e a satisfação dos usuários. O design é o meio de adicionar valor aos produtos industrializados, levando à conquista de novos mercados. As empresas têm usado o design como poderoso instrumento para introduzir diferenciações nos produtos e destacarem-se no mercado, perante aos seus concorrentes.

De fato, a definição reúne alguns dos termos mais usualmente relacionados à palavra design: a “melhoria” de aspectos “funcionais”, “visuais”, “melhorando” o “conforto” e a “satisfação” dos usuários. Em seguida, a consequência inevitável, “o meio de adicionar valor aos produtos industrializados, levando à conquista de novos mercados”.
A noção de design como processo eficaz, em uma perspectiva positiva, e como ferramenta de otimização de processos industriais e econômicos é tão onipresente quanto limitada. A crescente complexidade do cenário contemporâneo demanda mais substância no sentido do termo “melhoria”, bem como leva ao questionamento, em face do imperativo da sustentabilidade, do quão essencial e relevante é o processo “da conquista de novos mercados”.
Existem algumas abordagens não-usuais que são verdadeiramente contemporâneas no ato de projetar, ao se libertar do caminho primário da “melhoria” e da solução de problemas. Uma delas é o objeto deste artigo, que tentará analisar um projeto da dupla Anthony Dunne e Fiona Raby, realizando algumas associações com o conceito de dispositivo como definido por Giorgio Agamben, retomando escritos de Michel Foucault. O autor brasileiro Mozahir Salomão é também citado em sua exploração das diversas acepções do conceito de dispositivo, numa tentaiva de construir algumas pontes entre os projetos que este artigo se propõe a analisar e uma compreensão ampliada das possibilidades do design como atividade crítica.

Um placebo para sintomas do nosso tempo

Anthony Dunne e Fiona Raby iniciaram sua parceria de trabalho em 1994. Sua história como designers corre simultaneamente à carreira acadêmica de ambos, vinculados por longa data ao Royal College of Arts, de Londres, onde foram responsáveis pela criação do departamento Design Interactions.
The Placebo Project, de 1999, é o nome de uma série de objetos destinados ao uso doméstico, adotando tipologias comuns de mobiliário, mas ao mesmo tempo oferecendo uma perspectiva sobre a cultura dos objetos que hoje é considerada um ponto de referência, tanto no âmbito da trajetória pessoal da dupla de designers quanto na narrativa histórica do design de produto e suas vertentes mais inovadoras. O mote do projeto orbita em torno do fato de que, no mundo contemporâneo, existe muito mais radiação eletromagnética nas casas e nos ambientes do que jamais existiu, e tal fenômeno é invisível e largamente imperceptível.
Um ponto que merece atenção é o próprio nome do projeto. Placebo é um termo oriundo da medicina que designa um fármaco que apresenta efeito em um paciente não devido a suas reais carcterísticas químicas, mas em função dos efeitos psicológicos da crença do paciente de que ele está a ser tratado.
Nas palavras de Fiona Raby sobre o projeto,

“designers não conseguem sempre solucionar problemas, não podemos desligar as vastas redes eletromagnéticas que nos rodeiam. Embora não consigamos mudar a realidade, nós podemos mudar a percepção das pessoas a respeito dela. Como um placebo médico, os objetos neste projeto não removem ou contra-atacam a causa da preocupação, mas eles podem oferecer algum conforto psicológico. O projeto Placebo é definitivamente não científico: embora sejamos conscientes de metodologias antropológicas, escolhemos adotar um processo mais informal neste caso. Queríamos descobrir se pessoas em geral são mais receptivas a ideias radicais do que a indústria geralmente considera que são, e testar nossas ideias sobre estética e tecnologia eletrônica”

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O que a dupla de designers apresentava era uma linha de sete produtos, perfeitamente funcionais, destinados ao uso doméstico, considerando o contexto de onipresença de radiação eletromagnética nos lares contemporâneos. Nominalmente, os produtos são (1) Electro-draught excluder. Uma barreira física para bloquear campos eletromagnéticos. (2) GPS table. Uma mesa conectada a um sistema de GPS, informando sua posição exata no planeta Terra. (3) Electricity drain. Um banco que permite que seu usuário, ao se sentar nu, drene a eletricidade retida em seu corpo através de um terminal aterrado incorporado no banco. (4) Loft. Uma caixa de chumbo instalada no alto de uma escada oferece um lugar livre de radiação eletromagnética. (5) Compass table. Uma mesa equipada com uma série de agulhas magnéticas, capazes de revelar a orientação de campos magnéticos quando aparelhos eletrônicos são colocados em seu tampo. (6) Parasite light. Uma lâmpada de leitura que se alimenta da radiação eletromagnética que escapa de outros produtos domésticos. A lâmpada só funciona quando posicionada em campos eletromagnéticos. (7) Nipple chair. Um sensor de campo elétrico e uma antena são incorporados embaixo do assento de uma cadeira. Quando a cadeira é posiocionada em um campo eletromagnético, dois botões instalados no encosto da cadeira começam a vibrar, fazendo o usuário se tornar mais consciente das ondas que atravessam seu corpo. (FIGURAS 1 e 2).

Figura 2 – The Placebo Project, protótipos em situações de uso.
Figura 2 – The Placebo Project, protótipos em situações de uso.
O conceito de dispositivo e o sistema do consumo
Uma vez apresentado este caso para estudo, faz-se necessário nos mover em direção a um exame do conceito de dispositivo, na acepção que adotamos para este artigo. Giorgio Agamben, numa tentativa de sintetizar as ideias do filósofo Michel Foucault, definiu três características do dispositivo:

  1. É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos.
  2. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder.
  3. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e relações de saber. (AGAMBEN, 2009: 29)

A síntese de Agamben aponta para duas característcas que parecem muito relevantes para a análise que pretendemos empreender neste artigo. A primeira, a noção de dispositivo como uma rede de significados, articulando relações de poder e relações de saber. A segunda, de que um dispositivo possui uma função estratégica concreta, e se inscreve em uma relação de poder.
O impulso mais imediato de leitura poderia nos conduzir à afirmação de que os projetos em questão são dispositivos em si, pois é fácil os localizar dentro da síntese de Agamben, e existe a coincidência de que de certa forma, lidam com o universo da
eletrônica, constituindo-se como “dispositivos” num sentido mais imediato, de  denotar aparelhos eletrônicos.
Mas o que gostaríamos de abordar em primeiro lugar é o contexto que motivou o empreendimento deste projeto, e onde residem as características que configuram tal contexto como um dispositivo. Nas palavras de Fiona Raby,
(…)uma vez que objetos eletrônicos entram nas casas das pessoas, eles desenvolvem vidas privadas, ou ao menos vidas que estão escondidas do olho humano. Ocasionalmente conseguimos perceber uma fração desta vida, quando objetos interferem uns nos outros, ou não funcionam bem. Muitas pessoas acreditam que telefones celulares esquentam suas orelhas, ou sentem sua pele formigar ao se sentar próximas a uma tela de TV, e quase todo mundo já escutou histórias de pessoas captando transmissões de rádio ao tentar sintonizar canais de TV. Não estamos interessados se estas histŕias são verdadeiras ou científicas, mas sim nas narrativas que pessoas desenvolvem para explicar e tentar se relacionar com as tecnologias eletrônicas, particularmente as ondas eletromagnéticas invisíveis emitidas pelos seus  objetos eletrônicos[1].
Não seria o estado das casas modernas, perpassado por ondas eletromagnéticas oriundas de aparelhos eletrônicos, por sua vez produtos de um determinado avanço tecnológico sustentado por um discurso científico e reforçado pelo aceite social da adoção de certos hábitos de consumo, uma consolidação típica de um dispositivo, de acordo com o conceito apresentado? Poderíamos falar do dispositivo consumer eletronics, do dispositivo rede de telefonia celular, do dispositivo sistema de entretenimento doméstico, do dispositivo casa moderna?
Agamben propõe o conceito de oikonomia como um ponto comum entre o dispositivo segundo Foucault e questões similares abordadas por outros filósofos:

Comum a todos estes termos é a referência a uma oikonomia, isto é, a um conjunto de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens. (AGAMBEN, 2009: 39)

O ambiente doméstico contemporâneo, desta forma, estaria inscrito em uma oikonomia, manifesta no discurso do bem-estar, do conforto e da segurança através da adoção de certas tecnologias, características de um estilo de vida moderno.
Por outro lado, os produtos Placebo poderiam se situar muito bem como representantes do contemporâneo apresentado por Agamben, na citação que abre este artigo. A partir da onipresença do discurso do conforto, inovação e satisfação dos aparatos eletrônicos, apontam para uma dimensão invisível e imprevisível de sua existência. Como no texto citado,  “percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cansa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo.”
Neste momento chama-nos a atenção, mais uma vez, a apresentação de uma linha de produtos como um placebo, numa sugestão a um sintoma ou enfermidade que serve de contexto. Propor um placebo, e não uma solução eficiente e definitiva é o que talvez revele uma atitude mais crítica e perspicaz dos designers, não só em relação ao próprio contexto contemporâneo, mas ao papel do design e do designer nesse complexo emaranhado de dispositivos.
O discurso do Critical Design
Mozahir Salomão, em seu texto “Palavra: Dispositivo”, chama a atenção para a natureza de articulação discursiva que o conceito de dispositivo apresenta, ao se analisar algumas visões desenvolvidas por diversos autores:
Os dispositivos têm sido, de modo mais recorrente, entendidos como dinâmicas matrizes que orientam e que co-determinam os vínculos que os receptores estabelecem em processos amplos e difusos de oferta discursiva. Os dispositivos podem constituir-se, assim, por estruturas, agenciamentos e pontos de vinculação em que há um modo próprio de significar: as discursividades. Os dispositivos têm autonomia para produzir suas tessituras, mas que seguem também prescrições que vêm de outros campos. É um permanente jogo, uma disputa de validação, em que engrenagens não rígidas e muito menos constantes se movimentam e se alteram. (SALOMÃO, 2012: 41)
Salomão enfatiza um contexto de “permanente jogo” e de “uma disputa de validação” entre dispositivos e seu funcionamento como elementos num fluxo de construção e ressignificação de discursos.
Seria oportuno, neste momento, apresentar a filosofia de trabalho defendida por Dunne e Raby, e tentar localizar mais este elemento na interação entre dispositivos e no que Salomão apresenta como disputas de validação. O termo Critical Design é utilizado pela dupla de designers, consistentemente, para definir o tipo de trabalho que fazem. Como exemplo da importância que este tipo de definição conceitual assume em seu trabalho, podemos citar o texto Critical Design FAQ, disponibilizado em <www.dunneandraby.co.uk/content/bydandr/13/0>. A despeito do título e de sua apresentação aparentemente despretensiosa, o texto não cumpre menos que a função de um manifesto, e colabora na percepção de que as iniciativas da dupla se produzem a partir de uma complexa e consciente manipulação de discursos, com a clara intenção de apontar pontos de descontinuidade nas noções estabelecidas de design.
Ao definir o que seria Critical Design, o texto nos diz que “sua característica é utilizar propostas de design especulativo para desafiar suposições estreitas, preconceitos e valores estabelecidos sobre o papel que produtos assumem na vida cotidiana. É mais uma atitude do que qualquer outra coisa, mais uma posição do que um método. Há muitas pessoas fazendo o mesmo, mas que nunca ouviram falar do termo Critical Design, e que vão ter sua própria maneira de descrever o que fazem. Nomear essas práticas como Critical Design é simplesmente uma maneira de fazer estas atividades mais visíveis e sujeitas a dicussão e debate.” E mais adiante, o texto afirma que “seu oposto é o design afirmativo: design que reforça o status quo.[2]
Mais adiante, a lista de questões continua detalhando outras orientações desta abordagem sobre a prática projetual:
Um dos objetivos do Critical Design é questionar o limitado espectro de experiências emocionais e psicológicas oferecidas através dos produtos projetados. Design supostamente deveria fazer as coisas parecerem agradáveis, como se todos os designers tivessem feito um juramento de Hipócrates não-dito, isso nos limita e nos impede de nos engajar com a projetação para a complexidade da natureza humana, que obviamente não é sempre agradável.[3]
Como um conceito que articula relações de poder e de saber, e determina um sistema de controle (ao menos para a atividade projetual) a construção do Critical Design também pode ser identificada como uma ordenação que se relaciona com o conceito de dispositivo. O que a difere, no entanto, é que sua posição é a de oposição ao status quo, ou seja, num vetor contrário a um discurso hegemônico que pode representar os poderes e noções instituídos e tidos como os mais corretos ou mais esperados, com por exemplo, a noção do designer como solucionador de problemas.
O presente texto não pretende esgotar as relações possíveis entre as definições de dispositivo e a prática projetual em design. No entanto, conseguimos tocar em algumas questões que dizem respeito à utilização do conceito de dispositivo para análise do contexto e de algumas estratégias projetuais adotadas por Dunne and Raby em seu Placebo Project. Além disso, algumas reflexões aqui desenvolvidas apontam para uma percepção da dimensão discursiva da prática projetual. Uma leitura ampliada poderia incluir a própria noção de projeto como um dispositivo, sujeito e resultante das interseções entre relações de poder e saber.
A construção do discurso do Critical Design como parâmetro para a prática projetual revela uma estratégia que viabiliza a expressão e posicionamento do designer em relação a determinados contextos de grande complexidade. Desta forma, é possível considerar um tipo de prática projetual que se afasta de uma abordagem simplista, em direção a uma abordagem crítica, que incorpora as próprias limitações e contradições do design e da cultura de produção e consumo de artefatos.
[1] Once electronic objects enter people’s homes, they develop private lives, or at least ones that are hidden from human vision. Occasionally we catch aglimpse of this life when objects interfere with each other, or malfunction. Many people believe that mobile phones heat up their ears, or feel their skin tingle when they sit near a TV, and almost everyone has heard stories of people picking up radio broadcasts in their fillings.We are not interested in whether these stories are true or scientific, but we are interested in the narratives people develop to explain and relate to electronic technologies, particularly the invisible electromagnetic waves their electronic objects emit.
[2] Critical Design uses speculative design proposals to challenge narrow assumptions, preconceptions and givens about the role products play in everyday life. It is more of an attitude than anything else, a position rather than a method. There are many people doing this who have never heard of the term critical design and who have their own way of describing what they do. Naming it Critical Design is simply a useful way of making this activity more visible and subject to discussion and debate.
Its opposite is affirmative design: design that reinforces the status quo.
[3] One of critical Design’s roles is to question the limited range of emotional and psychological experiences offered through designed products. Design is assumed to only make things nice, it’s as though all designers have taken an unspoken Hippocratic oath, this limits and prevents us from fully engaging with and designing for the complexities of human nature which of course is not always nice. It is more about the positive use of negativity, not negativity for its own sake, but to draw attention to a scary possibility in the form of a cautionary tale.
Bibliografia
AGAMBEM, Giorgio. (2009) O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos.
BRUCK, Mozahir. (2012) Palavra: Dispositivo. In: Dispositiva, vlume 1 pp 39-44 disponível em: <www.dispositiva.com.br> Acessado em: 29 de novembro de 2015.
DUNNE, Anthony; RABY, Fiona. (2002) The Placebo Project. DIS ’02 Proceedings of the 4th conference on Designing interactive systems: processes, practices, methods, and techniques p. 11–14 , »1581135157.
O QUE É DESIGN? Disponível em <http://www.marketdesign.com.br/o-que-e-design.php> Acessado em 29 de novembro de 2015.
Critical Design FAQ. Disponível em <http://www.dunneandraby.co.uk/
content/bydandr/13/0>  Acessado em 29 de novembro de 2015.

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