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Escrevendo Caruncho: um romance de deformação

Editoria Felipe Cordeiro
Por Laura Cohen Rabelo

1.

Por mais que eu tenha escrito e publicado bastante coisa, inclusive romances, para mim há sempre algo aterrorizante em lançar um livro novamente. Eu me sinto uma iniciante absoluta, uma pessoa que não sabe nem fingir que tem ideia do que está fazendo. Enquanto o livro está sendo impresso, sou perseguida por uma sensação de que eu não deveria ter escrito isso. Sobretudo, não deveria publicar. Escrevi sobre coisas que simplesmente não me dizem respeito, há cenas absurdas no livro, irreais, não fazem sentido, os personagens não convencem. Certamente, eu poderia ter feito melhor. “Quem você acha que é para escrever o que você escreveu?”, diz uma das minhas vozes obsessoras. Outra diz: “aos trinta e dois anos, você deveria ser uma romancista mais madura, não é o caso de desistir diante dessa mediocridade?”

A desistência é justamente um dos temas do meu romance novo, Caruncho. O outro tema é a decadência. Em oposição aos romances de formação que já escrevi, Caruncho é um romance de deformação.

O romance é um espaço do controle. Nele, cada elemento deve alimentar a máquina do acaso e do acontecimento. Dar esse romance ao público é o tempo em que vou perder o controle que tinha sobre a narrativa, partilhada apenas entre meus amigos e editores. Pode ser, ao mesmo tempo, algo de terror, mas também há uma libertação: não preciso mais cuidar da vida desses personagens, estou livre de suas vozes e de seus problemas.

2.

As personagens, no romance, nascem para mim como uma vocação: um chamado que vem de um lugar inconsciente. Consigo me lembrar do surgimento do personagem do maestro do Caruncho, seis meses antes de eu sequer pensar em escrever esse romance: vi, em uma festa ao ar livre, um homem de seus sessenta e poucos homens, alto, vestido de forma elegante, acompanhado de três jovens mulheres que tinham tudo para serem suas filhas, tamanha a semelhança entre eles. Havia algo de enfado no rosto daquele sujeito, uma impaciência, e pela forma como estava vestido, os cabelos grisalhos compridos, parecia que ele queria parecer mais jovem do que realmente era. A imagem desse homem com filhas me assombrou por um tempo.

Depois, veio uma brincadeira: minha amiga musicista Rúbia de Moraes me deu duas peças para ouvir (Concerto para violoncelo nº1 do Shostakovich e a primeira sinfonia de Mahler) e eu me propus a escrever um romance que as tivesse no escopo narrativo. Eu tinha outras pretensões: escrever sobre o espaço de uma orquestra e escrever um romance em que os personagens não têm nome, algo que me parecia extremamente difícil: escrevo, majoritariamente, sobre pessoas, a questão da personagem é a minha questão. Como falar dessas pessoas sem nomeá-las?

Meu amigo Augusto Pimenta, que é regente, solucionou o problema para mim. Estávamos na sala Minas Gerais, indo a um concerto. Enquanto caminhávamos para nossos lugares, várias pessoas apareciam, apertavam a mão dele, e diziam: “maestro”. Depois de três ou quatro cenas como essa, perguntei o que era aquilo e ele disse, em sua elegante ironia: “aparentemente, eu não tenho nome”. Aí estava minha solução para o romance sem nomes: os personagens seriam chamados por suas funções na máquina da orquestra e da vida – maestro, violoncelista, assistente, inspetora, percussionista, filhas do maestro, ex-esposa do maestro.

O homem que vi na festa, com suas três filhas, tornou-se o maestro, um dos dois personagens principais da minha trama. Ao criá-lo, percebi que meu desejo era estudar um homem autoritário e autocentrado sob a imagem de um artista sensível e poderoso. A autoestima, a necessidade de controle, eu queria estar por dentro de um homem branco que não abre mão de seu lugar no centro do mundo.

3.

A outra personagem principal é uma violoncelista, e acho que dela sei dizer menos: mesmo depois de escrevê-la, uma mulher talentosa, mística e empática, ainda sinto que não sei muito. As personagens escapam depois que as colocamos no papel, como se seguissem sozinhas, como se fôssemos apenas um meio para elas. Eu queria falar sobre uma existência diferente da minha e uma pessoa que fosse oposta ao maestro.

Acho que ela surgiu em uma viagem que fiz a Vitória em janeiro de 2017, visitando a minha amiga Rúbia, já citada. Fui hospedada em um apartamento vazio, que pertencia a uma percussionista chamada Érica, que nunca cheguei a conhecer, mas que tocava na mesma orquestra que a Rúbia. Era um apartamento pequeno, cozinha, quarto e banheiro integrados. Era pequeno, mas aconchegante. Havia vestígios daquela mulher desconhecida, fotografias com pessoas que ela amava, um vibrafone, cremes e xampus no banheiro. Ainda assim, havia uma impessoalidade no espaço: Érica era uma figura de passagem, uma musicista que está sempre viajando.

Aquele janeiro foi marcado por essas mulheres em espaços de passagem: eu mesma estava terminando um mestrado muito difícil, no qual tive que enfrentar um abuso moral e uma mudança de orientação – nesse processo, desisti dos meus estudos em grego antigo, e desistir parecia uma libertação. Maysa Teotônio, uma amiga de escola da Rúbia, também estava lá: era recém-formada, estava mudando de emprego. A própria Rúbia estava se adaptando em uma cidade nova. Um janeiro como o personagem mitológico Janus: tem uma cabeça que olha para trás e uma cabeça que olha para frente.

Em uma das noites que passei no apartamento com minhas amigas, tive uma crise de choro sem motivo aparente, a primeira crise de angústia que se aprofundaria e duraria, e que está lá no Caruncho de alguma forma. Eu me lembro das mãos de Rúbia e Maysa me acolhendo e me afagando, uma de cada lado do sofá. Estar entre amigas é não estar sozinha. Eu não sabia, mas aquelas mulheres ajudavam a dar à luz para a violoncelista, essa personagem extremamente empática, que acolhe com a voz e que aos poucos amadurece, sabendo se posicionar e dar o fora quando não se sente mais pertencente a um lugar hostil.

4.

O romance é, portanto, um quiasma, uma oposição entre dois personagens. Um maestro de sessenta e cinco anos, cujo corpo adoecido pode impedir de que ele suba ao palco novamente (coisa que ele mais deseja) e uma violoncelista de trinta e cinco, no auge de sua saúde e talento, que desiste de sua carreira e propõe fazer um último concerto. Ele, um homem branco de um ambiente privilegiado, ela uma mulher racializada que dependeu de muito projeto social para ascender no ambiente elitista música. O maestro é narrado em terceira pessoa, a violoncelista narra a si mesma em primeira.

Seus capítulos estão separados por um período de dez anos e um conflito oculto entre os dois, que já estava lá quando comecei a escrever, mas do qual só fui tomar conhecimento à medida que fui escutando o que a violoncelista falava. Eu sabia apenas que deveria ir criando essa tensão negativa, sem entender se eu podia confiar no maestro. Sem saber (e não sei até agora, com o livro pronto) se ele teria uma redenção.

Às vésperas do lançamento, sinto pânicos repentinos por ter escrito esses dois personagens tão diferentes de mim. É como se eles não me dissessem respeito. Quem sou eu para escrever sobre esse homem e sobre essa mulher? Eu escutei o suficiente para construir esses dois de forma real e plausível? O que eu sei sobre o ambiente musical? Eu não toco instrumento musical algum, posso falar sobre música? Será que vou ofender alguém? Mas para que serve a literatura, se não para conseguirmos sair da nossa pele, conseguir se tornar o outro? Um outro que deforma a mim mesma.

5.

Pela maior parte do tempo em que o escrevi, esse foi um romance sem nome. De forma simpática, eu o chamava de “romance do maestro”. A ideia de Caruncho concentra essa deformação do romance: a ideia me veio quando um amigo pianista teve que pagar uma nota para reformar seu piano, que estava infestado de carunchos. A imagem do piano devorado não apenas entrou para a trama mas também nomeou a narrativa.

6.

Comecei em 2017, o processo agora se encerra em 2022. É um livro de trezentas páginas, mas não me lembro muito bem de me sentar à mesa e escrevê-lo por horas de trabalho. Há flashes, apenas: a ideia de escrever como uma fuga a duas vozes, as notas que tomei no meu caderno voltando de Vitória, as pilhas de originais revisados à lápis e caneta, coisas que ouvi e foram parar no livro, as entrevistas que fiz com músicos, horas de áudios sobre instrumentos musicais e o funcionamento de uma orquestra, desabafos de amigos que trabalham com música e estão vendo a precarização dos seus trabalhos.

Às vésperas do lançamento, ligo para meus amigos e editores que leram o livro e pergunto a eles se está bom mesmo, se eu tenho o direito de ter escrito o que escrevi e ainda por cima publicar. “Mas você é Laura Cohen!”, ouço vozes positivas falarem quando relato meu medo e meu desconforto. Como se meu nome já carregasse em si uma importância que não reconheço. Fiz um trabalho artístico: estranhamente conservo sobre ele um grande não-saber. Fica um vazio apavorante que vai inaugurar mais uma escrita, quando outros personagens começarem a falar.

Serviço

Carucho (2022), Laura Cohen Rabelo, Ed. Impressões de Minas, 295p.

https://impressoesdeminas.com.br/ • https://estrategiasnarrativas.org/

Laura Cohen Rabelo é escritora, autora de Canção sem palavras (Scriptum 2017) e Caruncho (2022). É professora de escrita criativa e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas. Mestre em Letras pela UFMG.

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