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Comida e identidade em “Ulysses”, de James Joyce

Por Camila Machado Reis

e Adriano Fagherazzi

O verbo “comer”, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa disponibilizado pela Porto Editora, tem as seguintes acepções: tomar como alimento; ingerir alimento sólido, tragar; engolir, dissipar; consumir. Ainda segundo o mesmo dicionário, a comida é: aquilo que serve para comer; alimento; sustento; refeição, repasto. Assim, definindo a necessidade de ingerir sólidos e semissólidos, visando à produção de energia que mantém o corpo/não corpo em funcionamento, entendemos uma parte do percurso energético necessário para sobrevivência humana. Terminaríamos aqui a nossa contribuição sobre o ato alimentar, se fôssemos máquinas feitas de ossos e carne.

No entanto, as práticas alimentares e a comida permitem-nos superar a barreira do mecânico. É o “alimentar-se” que desconstrói em nós a função de máquina. Ao buscarmos a gênese dessa desconstrução, voltamos a ação embrionária para a primeira corrente de amor, a qual estabelecemos com a nossa primária fonte de nutrição. Antes de sermos, comemos, e assim amamos e seguimos sendo.

A vida segue, e o cotidiano muda. O comer e a forma com que nos relacionamos com a mesa estabelecem fronteiras frágeis entre necessidade, desejo e obsessão. Em um processo articulado de relações causais, essas fronteiras fluidas sintetizam a conexão mais humana entre as práticas naturais e culturais. Então, comer, enquanto ato prático, é um elo para grande parte das nossas conexões humanas e cotidianas, permitindo que se pense nessas relações como um instrumento para a compreensão do Ser. Mais do que em nosso estômago, a comida está no nosso coração. Comer é sentir, sentir é comer, ser é comer e sentir.

A filosofia fantasia o ato de conhecer os impulsos que movem os homens, procura explicar o que é inexplicável e compreender o que é incompreensível. Existe algo mais inexplicável do que a nossa relação com a comida? Entre escolhas e práticas, o comer nos permite saber mais, ser mais; constrói e representa a nossa relação com o mundo, estabelece os nossos laços de fraternidade e retrata as nossas fragilidades. Quem melhor do que os contadores de histórias para sintetizar essas possibilidades na construção de seus personagens?

Em Ulysses, a comida está presente de forma não só física, mas também figurativa. Acompanhamos um dia na vida de Leopold Bloom, que não só cozinha para si, como também prepara o café da manhã com diligência e o leva na cama para a mulher amada: “Outra fatia de pão com manteiga: três, quatro: certo. Ela não gostava do prato cheio. Certo”. (Todos excertos aqui são de Ulysses, James Joyce. Tradução Caetano W. Galindo, da Penguin Companhia). Nas memórias afetivas com essa mulher, contadas ao longo do livro, a comida tem papel central.

Através da comida, nosso protagonista é apresentado — principalmente com a segunda parte da obra: “Mastigava destemperadamente, o senhor Bloom, as vísceras de aves e quadrúpedes”. E sua afinidade com ela permeia suas relações com os outros. Por meio de seus monólogos internos, é escrita quase uma ode aos movimentos e às partes femininas alusivas ao porco — apesar de judeu —, e assim, apresentar uma posição controversa em relação à religião. E sua obsessão por rins: “Tinha rins na cabeça enquanto se movia delicadamente pela cozinha (…)”.

Uma rotina de refeições aparentemente banal, mas que Joyce costura o perfil sociopolítico de uma Irlanda que passa fome e que eventualmente possui pequenos bolsões de luxo e excesso, cujas descrições de alimentos causam repulsa. “Pat servia pratos expostos. Leopold cortava fatias de fígado. Como dito anteriormente, ele castigava desesperadamente os órgãos internos, moelas amendoadas, ovas fritas de bacalhoa…”. Mesmo quando resolve fazer uma refeição vegetariana, após frequentar um Festival da Carne, Bloom devora um sanduíche de gorgonzola com mostarda: explosão inusitada e luxuriosa nas suas papilas gustativas. Inclusive, o restaurante que nosso protagonista vai comer essa refeição existe de fato e pode ser visitado em Dublin e seguido no Instagram @davy.byrnes.

Vale ressaltar que a Batata, nomeada comida simbólica da nação irlandesa por Bloom, também foi a causa da Grande Fome (The Irish Potato Famine, 1845-1849). Nessa obra, a comida é uma ferramenta que veicula identidade, política e sentimentos: no monólogo final, Molly aquiesce receber da boca de Bloom um típico bolo inglês de sementes . A hora da refeição em Ulysses é metafórica.

Camila Machado Reis é atriz formada na Escola do Grupo Galpão. É bacharel e mestre em Letras Clássicas (UFMG) e doutoranda em Estudos Clássicos (Universidade de Coimbra). Pesquisa Teatro e Música da Antiguidade Clássica.

Adriano Fagherazzi é historiador formado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É mestre em Letras Clássicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando em Estudos Clássicos (Universidade de Coimbra). Pesquisa sobre Estudos Alimentares na Antiguidade.

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