Por Giselle Luz e Emília Mendes
Editoria Ana Caetano
André Léo, nome masculino adotado para se fazer ouvir, é o pseudônimo de Victoire Léodile Béra, nascida na comuna de Lusignan, no departamento de Vienne, na França, em 18 de agosto de 1824. Morreu em 20 de maio de 1900, em Paris, com 75 anos. Em sua juventude, a autora francesa foi profundamente interpelada por suas leituras tanto dos filósofos iluministas quanto dos pensadores revolucionários da época encontrados na biblioteca familiar. Além disso, o contato próximo com a realidade dos camponeses locais foi também muito marcante.
Léo, de forma ousada, reivindica em sua obra o direitototal e irrestrito à liberdade e à democracia. É também uma crítica ferrenha dacontradição existente na Revolução Francesa ao não outorgar direitos àsmulheres, já que essa abordagem não lhes conferia direito à cidadania, ou seja:a nova ordem para os homens, a velha ordem para as mulheres. André Léo nãonarra apenas o que ouviu falar, mas o que vivenciou, corporificando eexperenciando a luta em defesa das mulheres (camponesas, operárias, etc) queforam silenciadas em sua época.
A escritora dos direitos das mulheres revela seupolimorfismo literário, como bem ressalta Pellegrin (2015), ao transitar pordiversos espaços da literatura e do jornalismo: assina romances, contos, poemasem prosa, livros infanto-juvenil, ensaios de análise política e até uma peçateatral.
Ela é uma ativista no sentido moderno e sua escrita é uma ferramenta de resistência sócio-política contra as desigualdades sociais. Ao se direcionar à sociedade de sua época através de artigos publicados nos jornais La Coopération, L’Opinion Nationale, LeSiècle, La Démocratie, Le Rappel, Les Droits des Femmes e La République destravailleurs Léo conclama seus leitores a refletir abertamente sobre a igualdade entre homens e mulheres, democracia, valores republicanos, dentre outros temas.
Jornalistae feminista libertária, participa de forma efetiva na Comuna de Paris (1871), presencialmentee através de textos em que apresenta a importância da união dos camponeses e das camponesas, dos operários e das operárias em busca de uma mudança no status quo sexista. Segundo Léo, o modelo vigente colocava em xeque as bases da própria democracia e dos ideais defendidos pela Revolução Francesa (cf. Luz (2017)).
Contudo, a autora observa, dentro do próprio movimento operário, o processo de marginalização das mulheres. André Léo problematiza, assim, a visão de alguns republicanos que, ao invés de inserir as mulheres nas pautas sociais, revelam que ainda não estão dispostos a abrir mão de seus privilégios rumo à construção de uma sociedade que partilha direitos igualitários. Qual o caminho encontrado por Léo diante de tal paradoxal exclusão?
A escritora vê na educação laica a base para a formação de sujeitos críticos e conscientes, não apenas de seus deveres, mas também de seus direitos. Em 1869, André Léo, em parceria com professores, camponeses, mulheres das letras e advogados, participa como co-fundadora da Société de Revendication des Droits de la Femme [Sociedade de reivindicação dos direitosda mulher] que teve como objetivo exigir a reforma no código civil para que as mulheres tivessem seus direitos efetivamente respeitados e fosse aberta uma escola para meninas, como pontua Gastaldello (2015). Tal escola deveria considerar as necessidades e habilidades de cada aluna e, a partir disso, proporcionar uma educação que estimulasse tanto o intelecto, através de matérias como geografia, desenho, línguas vivas, quanto matérias que orientassem sobre a saúde física como higiene, anatomia e ginástica.
Para essa pensadora e militante política, se desejamos formar cidadãos críticos e conscientes de seus diretos e deveres, é necessário ultrapassar o modelo tradicional de ensino que visa apenas transmitir um saber de forma hierarquizada e arbitrária. Segundo a autora, é fundamental se pautar na busca por uma co-construção de saberes por meio de uma relação horizontalizada que seja, sobretudo, reflexiva.
Não conhecemos nenhuma tradução, para o português brasileiro, das obras desta feminista à frente de seu tempo. Por esta razão, trazemos aqui um pequeno excerto para que o leitor brasileiro possa entender um pouco de sua obra.
Referências
ANDRÉ Léo. Fotografias. Disponível em:< http://www.andreleo.com/Portraits-de-Andre-Leo-et-de-sa-famille>. Acesso em: 11 julho 2018.
BEACH, Cecília; VIBRAC, Louis. Élan d’une trajectoire. In: CHAUVAUD, Frédéric; DUBASQUE, François; ROSSIGNOL, Pierre; VIBRAC, Louis. Les vies d’André Léo. Romancière, féministe et communarde. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2015. p. 51-63.
GASTALDELLO, Fernanda, Le pouvoir de l’éducation chez André Léo. In: CHAUVAUD, Frédéric; DUBASQUE, François; ROSSIGNOL, Pierre; VIBRAC, Louis. Les vies d’André Léo. Romancière, féministe et communarde. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2015. p.167-174.
LUZ, Giselle Aparecida. Dos bastidores à tribuna: argumentos e contra-argumentos de André Léo na construção dos direitos das mulheres na França do século XIX. 2017. 175 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.
PELLEGRIN, Nicole. Féminisme etRévolution française: L’exemple d’une “bourgeoise qui avait fait la guerre desprolétaires”, André Léo. In: CHAUVAUD, Frédéric; DUBASQUE, François; ROSSIGNOL,Pierre; VIBRAC, Louis. Les vies d’AndréLéo. Romancière, féministe et communarde. Rennes: Presses Universitaires deRennes, 2015. p. 33-49.
O DIREITO DAS MULHERES[1]
(Fragmentos)
Este é o estado da questão das mulheres no momento em que estamos: avançada na América até o ponto de terem conseguido o sufrágio de duas assembleias legislativas, sustentada na Inglaterra pelos homens mais eminentes, agitada na Alemanha e na Suíça. Na França, a questão das mulheres está na ordem do dia na imprensa, nos livros, nos romances.
É que o princípio sobre o qual se baseou e que lentamente se construiu a nova sociedade colhe seus frutos, tanto aqui como em outros lugares. O direito, que de agora em diante decorre do indivíduo, confere à mulher, como a todo ser humano, a igualdade.
Sem compreender este princípio — que, no entanto, é a base de suas reclamações e o único fundamento inabalável da democracia — alguns democratas veem a mulher somente como uma mãe, ou seja: um agente social. Tais democratas descartam para as mulheres a autonomia individual que reivindicam para si mesmos. Com um único traço da mulher, suprimem, junto com a liberdade, a maior parte da sua vida: a primeira juventude, a idade madura, a velhice. Eles fazem dos anos que duram as obrigações da maternidade o ponto único do destino deste ser humano e a única finalidade de toda sua atividade.
A mulher nunca foi senão mãe e, para isso, deve ser o mais educada, o mais ponderada, o mais inteligente que se possa ser.
Ora, a não ser que se decida que o governo desse mundo deva pertencer à força bruta, qual razão poderia impedir um ser inteligente de desejar e de agir de acordo com o que lhe toca?
— E atualmente, qual é a questão social pela qual a mulher não esteja interessada?
— Ah! Mas e as imundícies da rua! E as batalhas na via pública! … De fato, com medo de ataques de nem sei qual tipo, cultiva-se na mulher a ternura e os pequenos cuidados até o ponto de querer conservar nela uma dependência cujo resultado final, de rebaixamento em rebaixamento, é uma degradação cuja nomeação é repugnante.
Chegamos ao ponto mais sensível da questão, pois é particularmente no que se diz respeito aos direitos políticos que os homens vivenciam uma excessiva repugnância — incluindo-se aqueles muito dispostos a fazer justiça para as mulheres. Querem a mulher esclarecida, independente, mas recusam-lhe o meio de realizar sua vontade; reconhecem-lhe o direito de agir em tudo o que lhe diz respeito, mas proíbem-lhe a escolha de seus agentes. Por que esta contradição? Garanto-lhes que nada sabem a esse respeito.
A ordem — esta é a nova religião — a ordem é a justiça. Que nenhum democrata, digno desse título, tente fazer uma combinação da velha ordem com a nova ordem. Ele nada faria senão forjar uma corrente que se quebraria cedo ou tarde. Qual papel as mulheres desempenham na atualidade? “Elas reduzem a nada os nobres esforços”, “elas retardam o futuro”. É exatamente isso. Faltou fé aos inovadores. Eles mantiveram o despotismo na família e o colheram no estado.
Na ordem antiga — na qual o céu governa através de seus enviados, na qual cada pedra angular é uma hierarquia, na qual o esplendor do rei Sol é feito pela humildade de todos — toda virtude, de uma parte, é obediência e, de outra, comando. É através dessa ordem, para a grande glória de Deus, que matamos, que pilhamos, que violamos seus juramentos. O útil é naturalmente o injusto, já que a ordem é o privilégio.
No direito oriundo do ser humano, ao contrário, não há sujeição que não seja desordem, não há injustiça que não seja crime, não há ponto de compressão que não fira todo o corpo social. A ordem verdadeira está na harmonia produzida pelo livre desenvolvimento de todos. Duvida da liberdade aquele que não vê nem a família regenerada, nem a maternidade enobrecida.
André Léo
[1] Tradução: Emília Mendes e Giselle Luz, do original em francês ANDRÉ Léo. Le Droit des Femmes. In: Almanach de la Coopération pour 1869, Paris: Journal La Reforme, 1868.